LABORATÓRIO DE TEXTOS
Esta é uma fresta por onde se pode espreitar o nosso laboratório.
Gostamos de experimentar textos, inventar espaços e condições especiais e neles deixarmo-nos espantar pelo que acontece.
Aqui, recolhemos algumas das linhas que vão sendo criadas em diferentes oficinas. Algumas delas, dirigidas a antigos alunos, como a Naftalina, são iniciativas regulares; outras, abertas a quem por cá passa, são encontros e iniciativas extra-aulas. Placas de Petri.
Os textos, produzidos no tempo e condições das sessões, têm como único — e suficiente — critério de publicação a vontade do seu autor de vê-los aqui reproduzidos. Experimente ler, mas proteja-se: o prazer da experiência pode ser contagiante.
A escrita em Bola de Neve é um exercício OuLiPo que normalmente é feito acrescentando mais uma letra ou palavra a cada frase de um poema. Adaptámos e criámos um exercício a pares em que cada frase utiliza as últimas frases da anterior.
A segunda parte foi dedicada do Folhetim, publicado na entrada mais recente deste blog.
E uma frase para começar?
Começar é caminho certo para acabar.
Acabar ou pelo menos tentar.
Tentar era o que ele fazia sempre que se encontrava nesta situação.
Situação que o deixava meio zonzo ou pelo menos atordoado.
Atordoado, lembrava-lhe os tempos de juventude em que as noites eram complexas e acabavam quase sempre de madrugada num estado de vaga lembrança do que tinha acontecido.
Acontecido e largas vezes adormecido num qualquer beco mal-afamado desse alto bairro que sobe.
Sobe até chegar aquela zona plana que se estende para lá dos limites do próprio bairro e que acaba no grande muro que nos separa dos outros.
Outros para os quais Elidério nunca ligou nenhuma. Não precisava deles; a sua propensão para a desordem era notória.
Era notória e vinha de longe. Desde que se lembrava de si que a desordem fazia parte da sua vida. Estranhamente, era isso mesmo que lhe dava segurança. Nada o assustava mais que um mundo em que tudo estava no seu suposto lugar.
Lugar onde vinha a sua alcunha: "Out of order" para os estrangeiros; Fora da Lei para os falantes do português
Português era a sua língua e sempre veria o mundo desse lugar.
Francisco Feio
Tiago Pina
Abriu a porta da gaiola e o canário voou.
Voou para terras distantes.
Distantes da vista, mas tinha-as perto na memória.
Na memória estavam paisagens de uma outra vida.
Vida essa que fora vivida de braços abertos, em liberdade.
Liberdade, conseguiria a adaptar-se a ser livre outra vez?
Outra vez a voar sem destino e pousar para descansar em qualquer árvore.
“Em qualquer árvore por aí deve estar ele pousado, não deve ter ido longe. Vou sair e procurar.”
Procurar revelou-se uma tarefa bem mais difícil do que imaginara. Não havia sinal do pássaro.
Pássaros havia muitos, mas nenhum era o seu canário. “Deve-se ter perdido!”
Perdido estava ele, reparou depois de olhar em volta.
Francisco Semedo
Helena Campos
Vi uma borboleta no céu,
céu que anunciava chuva.
A chuva não chegou,
chegou apenas o carro que me levou à universidade.
A universidade estava fechada.
Fechada apenas por um dia, é verdade, mas fiquei muito desapontada.
Desapontada porque tinha de fazer um exame.
O exame era o último do meu curso de enfermeira.
Enfermeira queria ser eu.
Eu desejava ardentemente trabalhar na ONU como voluntária,
Voluntária no Brasil.
Brasil, país de sonho ou pesadelo.
Pesadelo não, mas só sonho.
O sonho somos nós que o cumprimos.
Cumprimos o que desejamos ardentemente.
Ardentemente, enlacei-o pela cintura e beijei-o, beijei-o com um sorriso.
Um sorriso iluminou-lhe o rosto,
Rosto que agora expressava felicidade.
A felicidade é um estado de espírito!
Conceição Brito
Giuseppa Giangrande
O Tite, tute,Tate, tibi tanta tyranne tulisti
Ó Titus Tazio tirano, tantas tiranias tu provocaste
Quintus Ennius (230-169 a.C.)
Conta-se que este será o primeiro tautograma escrito. Tauto=mesmo, grama=letra. Depois de lermos outros textos semelhantes, na primeira parte da sessão, ensaiámos esta técnica. A repetição deu origem a textos com um ritmo inesperado e concentrou nossa atenção nas qualidades sonoras da palavra. Além disso, é divertido… Razão mais do que suficiente para pôr a caneta no papel.
A segunda parte foi dedicada do Folhetim, publicado na entrada mais recente deste blog.
Francisco fez figura falando:
«Façam fila, francos fregueses franceses. Faço fiado finalmente!»
Felicidades fogazes o felicitaram.
«Faculta-me facas?» - falou Fernando de focinho fechado.
«Faça-me fotografias fluorescentes, faz favor!» - Felisberto falou fulminante.
«Fazem-me falta foguetes!» - forçou Frederico fulgurosamente.
Fingindo fleuma, Francisco falou forte:
«Franceses falei! Frade François, faça favor de falar!»
Fim.
Francisco Semedo
Inês, informadora imaculadamente idónea e indómita, incha irada:
Ignóbil!
Ignorante!
Idiota!
Inepto!
Ignavo!
Infame!
Insípido!
Insidioso!
Ilude-se, inconformada, inocentando idiossincrasias inanes.
Inês Rodrigues
Francisco falava finalmente fora da faculdade, fabricando frases que formavam fantasiosas ficções.
Figuras fonéticas de frondoso fascínio, fincavam forte fraseado filosófico de furtuita felicidade.
Fazia facilmente frente ao falso e frequente fulgor fugidio de feirantes que fatigava fatalmente o funambulista francês de Friburgo.
Fraca fotonovela. Faria freneticamente um fricassé de frango fumado.
francisco feio
Horas holísticas
Helena, há hospitais e hotéis
Havia homens, hienas e hospedes habitando histórias
Hoje há hipérboles hiperactivas
Hérnias hereditárias e heras heroicas
Hierarquias de hexágonos e hidras hilariantes
Há humanos hipotecados a horas hostis
Há o horóscopo, a hortelã, a honra homicida, a homeostasia do húmus.
Vi vistosamente vista da varanda vermelha a via vernácula
O verão varreu-se de veludo velho em vicissitudes vidradas
Veemente vilipêndio às voltas e voltas
O vendaval da vida vendeu-se venenosamente
Viajei veloz visando a verdade
Vulto de vontade viscosa vivendo vertiginosamente
Venho de vulcões verbalizados e ventos vegetais
Helena Campos
Tiago Tangadana
trauteou timidamente
trava-línguas
tão trôpego
que Tristão Trovador
teve treze traumas,
trinta trecos,
trezentos tremores.
Tão tolo tal Tiago,
tivesse testado tetrassílabos.
Tiago Pina
Gato Galego
gema gelada
Ginja Ginjeira
gota gotejante
gulosinar gulosinas.
Giuseppa Giangrande
Com cadência caricata, caranguejos caminham céleres competindo com camarões.
Correm calmos, celebrando contentes, chocalhando contra conchas coloridas.
Chacais caçadores calcorreiam, cuidadosamente, caminhos com cheiro a crustáceos: comida!
Com certeza considerável, consistentemente, comê-los-ão, conjuntamente com cavalas, caracóis, carapaus, chocos e cabaças – caso cresçam cerca.
Colossal celebração!
Conceição Brito
Julio Cortazar trouxe-nos instruções para subir escadas, chorar, cantar... Yoko Ono, no belo livro Grapefruit, indica-nos de forma poética e minimal como criar, como viver. Inspirados nestes textos, escrevemos as nossas instruções.
Na segunda parte da sessão, trabalhámos no Folhetim - as histórias podem ser vistas na entrada mais recente do blog.
Como afiar um lápis
Pegue no lápis. Pegue numa afiadeira. Se não tiver uma à mão, procure outro qualquer utensílio cortante. Pode ser a faca de cozinha que usa cortar os vegetais de um jantar romântico. Pode ser um pedaço de vidro da garrafa de vinho que se partiu quando estava a ouvir música na varanda, ou mesmo o bisturi do médico que salvou a vida daquele rapaz que pensava poder voar. Pode até ser o gume da espada do cavaleiro de armadura que, cavalgando sozinho na frente do seu exército, desafiou o rei tirano. O importante é que corte. Coloque o lápis na afiadeira ou encoste-o à lâmina da faca, ou do bisturi, ou da espada ou ao vidro. Retire-lhe as primeiras camadas de madeira, cheias de histórias já escritas e continue até este estar limpo. Passe agora a atenção para o carvão e carregue com força nele, até que o derramar de palavras já gastas o deixe bem brilhante.
Pressione com o dedo indicador na ponta do lápis. Se conseguir sentir a dor e a felicidade estará pronto para escrever.
Francisco Semedo
Como ler um livro (para leitores inexperientes)
Pegar num livro. Desfazer a encadernação do livro e separar todas as páginas. Atirar as folhas ao ar e deixar cair no chão. Repetir 3 vezes. Juntar as páginas e encadernar na ordem e orientação em que ficaram. Ler o livro normalmente, da primeira à última página.
Como ler um livro (para leitores experimentais)
Ir à estante e tirar um livro qualquer. Abrir o livro na última página e ler a última linha. Ir à página anterior e ler a última linha. Seguir este método até à primeira página. Voltar à última página, ler a penúltima linha e repetir o processo até não restarem mais linhas para ler.
Como ler um livro (para leitores experimentados)
Sente-se num lugar bem iluminado de luz natural, de preferência junto a uma janela, com luz abundante a entrar no espaço. Ponha-se confortável e pouse o livro num móvel perto de si. Aguarde que o dia acabe e a luz se desvaneça por completo. Agarre o livro, sinta-lhe o peso, a textura e o calor. Por fim, abra-o e deixe que os seus olhos, através da escuridão, encontrem as palavras.
francisco feio
Instruções para ler um livro
Lembra-te de um cheiro que gostes muito; o seu perfume, seja novo ou velho, é igual.
De seguida, limpa bem os ouvidos, veste a tua melhor roupa, penteia-te e calça os melhores sapatos que tiveres.
Abre-o, sente as letras, fala com elas e aconchega-as.
Tem uma rosa por perto para não te perderes, quando voltares à Terra.
Quando acabares, passa-o a uma pessoa a quem queiras bem.
Não precisas de dizer adeus, porque ele já és tu.
Tiago Pina
Como saborear uma história
Abre o livro e começa a saborear algumas coisas: um bolo, um pastel... Morde uma maçã... Assim vai dar sabor às palavras e poderás entendê-las melhor. O bolo e o pastel vão ajudar e adoçar as amarguras da vida.
Como escrever um breve texto em português e italiano
Mistura cores: verde, branco, vermelho, amarelo, azul... e sons: o mar, a língua... Irás ter um breve texto em português e italiano.
Giuseppa Giangrande
Como consultar um dicionário
Consultar um dicionário é uma jornada de amor. É preciso amar as palavras, sentir o deleite profundo de as saber contidas num volume, generoso de tamanho e dedicação, que se abre para nós numa dádiva de sabedoria sempre que o solicitamos.
Em primeiro lugar, é preciso gostar de ler. Ou de escrever. Ou de ouvir. Ou de falar. Assim se adquire um manancial de matéria prima, as palavras, que vão deslizando pela nossa alma até, de repente, tropeçarmos num termo que nos trava. Quem és tu, palavra desconhecida? Seguir então, escrupulosamente, as seguintes orientações de pesquisa e esclarecimento.
1 – Extrair o dicionário do seu lugar habitual com o cuidado e a reverência que merece;
2 – rever o ordenamento das letras, no alfabeto, para ter uma percepção do local onde poderá afastar as folhas, para início de pesquisa;
3 – abrir respeitosamente as páginas, sem lamber os dedos;
4 – consultar os cantos superiores esquerdo e direito de cada uma, para chegar a uma constelação de letras que se aproxime do objecto da pesquisa;
5 – deslizar um indicador pelas eruditas linhas até encontrar a palavra que nos fez parar.
Pronto, já sabemos um pouco mais!
Conceição Brito
Como saborear uma história
Comece por se dirigir à cozinha e prepare um cocktail alcoólico, ou um sumo de frutas ou um sumo de legumes, temperando-o a gosto.
Prepare a cadeira mais confortável que tiver e coloque-a junto à janela ou à varanda. Ponha uma almofadinha contra o espaldar da cadeira ao nível dos seus rins. Coloque em frente da cadeira um apoio calibrado para os pés. Consoante a estação do ano, e para o tempo frio, calce um par de mitenes, botas altas macias forradas de pêlo e tenha à mão uma manta quentinha. Pelo contrário, nos dias quentes, dobre um xaile levíssimo no seu colo para as madrugadas e o entardecer. Sente-se confortavelmente e saboreie um sorvo da bebida que elegeu. Leia a primeira página do seu capítulo, depois a do meio seguida da última. Vá degustando quer a sua bebida quer as palavras de cada capítulo gostosamente até ao fim.
Lídia Vieira
Escrever em cerca de 100 palavras pequenas histórias é um desafio. Como equilibrar a história com o tema não expresso? Como gerir a passagem de um estado ao outro, que é a característica do conto, num espaço (e tempo!) tão curto? Os participantes responderam com uma grande diversidade de estilos. Como parâmetros: uma cor, um nome e um objeto: violeta, Sara, sacola.
A segunda parte da sessão foi reservada ao Folhetim - o andamento das historias está reunido na entrada mais recente do blog.
O espelho
Desviar o olhar era uma arte e Sara exercia-a com a mestria de quem estava habituada a fazê-lo. Aquela hora as ruas começavam a ficar cheias, mas não há hora perfeita para sair de casa. Os passos eram cada vez mais decididos e o corpo ia ganhando uma postura mais confiante. Apenas a cabeça se mantinha a olhar mais o chão que o futuro. Até a sacola que trazia ao ombro lhe parecia agora mais leve do que quando saiu; não tinha muito para a encher. Parou na última montra antes do final da rua e olhou-se no espelho. Sim; o olho estava violeta. Era a certeza que nunca mais iria regressar.
francisco feio
Orlando chegou ainda antes da hora. Como o seu passo vai desacelerando decidiu sair mais cedo. O banco do jardim, onde sempre se sentavam, estava coberto de flores. Violetas. Tal como o vestido que Sara tinha usado na primeira vez que ali estiveram. Apressou-se a limpá-lo e sentou-se, com a sacola sobre os joelhos. Dela tirou o vinho e os dois copos. Olhou para o céu e viu que ainda havia tempo. O sol ainda ia bem alto. Não seria desta vez que perderia o pôr do sol, do primeiro dia do ano, no banco de jardim onde se tinham conhecido. Ainda que, a partir de hoje, o fizesse sozinho.
Francisco Semedo
O vento fazia-se sentir descaradamente nos cabelos de Sara. A sacola, presa pelo ombro, apenas por sua teimosia não corria atrás do silvo do vento. Haviam-lhe dito que vivia nos campos, de um violeta mordaz que lhe entrava pelo peito adentro, a cura para a loucura de sua mãe.
Tencionava correr no caminho de volta, rasgar os pés nas pedras. Desejava retornar com tal ansiedade que só depois de sua mãe ser assegurada viva viriam os golfejos de dor.
Deitou-se sobre a terra, quedou-se de olhos abertos engolindo o céu e, de uma só vez, tossiu a esperança do corpo.
Rodrigo Rufino
O país da Sara tem a forma de um retângulo, com água por parte. É antigo, e por isso, já muito assistiu, tanto que nem mil sacolas chegariam para as arrumar.
No país da Sara, pode-se reclamar e dizer, por exemplo, que o nosso que nos corre nas veias é violeta.
Neste momento, o país da Sara não está bem, assim como quando estamos com uma dor de barriga muito forte.
Há pessoas no país da Sara que querem voltar a 1926. A Sara só quer que ele volte a ficar vermelho e verde.
Tiago Pina
A sacola violeta
A menina Sara tem uma sacola violeta que lhe ofereceu a sua madrinha. Ela tem muitas sacolas, mas só quer a sacola violeta.
Há um motivo por essa predileção: a sacola violeta, como fazem os óculos cor-de-rosa, deixa-a ver tudo com outros olhos, o de otimismo e para a Sara isso é muito importante, já que ela frequentemente vive situações que lhe causam tristeza.
A sacola violeta acompanha-a quando está sozinha, como os pais não se preocupam com ela e cuidam apenas dos seus interesses.
Nessas ocasiões, a sacola fala com ela e conta-lhe histórias de mundos longínquos, mas bonitos.
Giuseppa Giangrande
Naquele belo dia de primavera fui até ao jardim perto de minha casa.
Sentava-me naquele mesmo banco a cada dia a olhar as violetas que cresciam vagarosamente.
Olhar para elas lembravam-me a minha doce Sara, que partira tão repentinamente.
A sua ausência respirava-se em cada divisão de minha casa e só encontrava paz naquele jardim.
Nisto vem ter num repente um gato preto que se encosta a mim e eu, assustado, deixo que ele não se afaste e partilho aquele momento de quietude com ele.
Olho de soslaio para a minha sacola e vejo que a Sara havia deixado um bilhete, como era seu grande hábito.
Abro e leio: Eu não fugi.
Mariana Matias
A sacola estava escondida debaixo do armário da sala. Lá dentro acumulavam-se os pequenos tesouros que Sara transportava para todo o lado: o seu livro de desenhos, os lápis, as gravuras, as pedrinhas, os espelhos. Abriu o fecho com antecipação: hoje ia estrear as aguarelas novas. Ainda não tinha escolhido o que pintar, mas sabia que seria em tons de violeta, a sua cor favorita.
Cuidadosamente tateou o interior e, horrorizada, sentiu uma massa viscosa a envolver-lhe os dedos: a sacola estava cheia de lama.
- Ah Luís, Luís, que te mato quando for grande!
Conceição Brito
Kandinski, Pintar a música
Sentidos cruzados
Franz Liszt, Duke Ellington ou Pharrel Williams são apenas alguns dos músicos que ao ouvir notas ou instrumentos vêem cores. Liszt diria à orquestra algo com «menos rosa, senhores, este trecho é violeta». A sinestesia, ou o despertar de uma experiência sensorial a partir do estímulo de outro sentido, é um fenómeno conhecido e funciona a vários níveis. O escritor Vladimir Nabokov, por exemplo, dizia que a sequência de letras «NZSPYGV» era o arco-íris, o poeta francês Arthur Rimbaud escreveu o célebre Vogais, mostrando-nos as cores por detrás de cada letra.
Ao abordar os Sentidos, um dos temas-chave da escrita, mergulhámos na sinestesia e fomos à procura das cores, sabores, temperatura e imagens do excepcional e hipnótico, Music for 18 Musicians, de Steve Reich.
Depois de alguns exercícios, os participantes escreveram um texto livre.
Agora que é noite, o comboio continua a atravessar a imensidão que nos separa ainda do mar. A paisagem desapareceu da janela, as luzes vão-se desvanecendo e ganha presença o som do rodado a passar nas travessas com uma cadência de metrónomo a marcar o tempo para uma peça de música que cada um tocará como bem entender. A pauta que nos foi distribuída no início da vagem está em branco e cada um vai construindo a sua música à medida das suas possibilidades. O comboio é como uma orquestra em movimento, em que cada músico toca a sai parte em silêncio, sem saber o que os outros tocam. E assim se vai construindo uma grande sinfonia interior que todos tocam e ninguém irá ouvir. Esse silêncio é o único registo que fica da viagem e o único que perdurará no tempo.
Francisco Feio
Vejo rostos apressados em cima de corpos que se movem quietos, direitos, dentro de máquinas com rodas que andam sozinhas e produzem ruidos estranhos. Há filas intermináveis dessas máquinas de lata e quatro rodas, às vezes só duas. Buzinas estridentes assustam-me porque não sei de onde vêm. De cada lado dessas ruas há outras máquinas de lata, paradas, e depois delas outras ruas contíguas a casas altas com muitas janelas, muito alinhadas e ordenadas. Estas ruas só têm pessoas, que caminham rápido, sacos nas mãos, algumas falando e gesticulando mas estão sozinhas, não se percebe para quem e com quem falam.
Nada sei, nada conheço ou reconheço. Estarei num filme de ficção científica ou num futuro distópico mas no mundo donde venho ainda não se inventou nem a ficção científica nem a distopia.
Paula Carvalho
Uma luz clara, brilhante, tão brilhante que deixa ver tudo em branco, mas que depois se faz azul.
Uma luz que deixa sentir tranquilidade, calma e que dá felicidade.
Instantâneos de uma fotografia que passam e que recordam um tempo maravilhoso, em que se saboreou a felicidade e a liberdade.
Desejo de que esse tempo volte.
Giuseppa Giangrande
Há uma urgência no ar. Há sempre uma urgência no ar, pensava ela. Sempre, sempre, sempre, alguma outra coisa para fazer, para pensar, para experimentar. “há dois tipos de pessoas, as que estão sempre à procura de algo novo, e as que estão satisfeitas.” Deixou o cérebro ir. “há dois tipos de pessoas, as que vão explorar o mundo, e as que ficam a cultivar a terra.” O cérebro já estava longe. “há dois tipos de pessoas, as que se enfrentam a cada batalha, e as que sorteiam os obstáculos, qual barco a navegar entre rápidos”.
Abriu os olhos, na carruagem cheia do metro, cheia de perfumes, algum suor, muito cansaço acumulado de noites mal dormidas. Abriu os olhos e não encontrou nenhuns outros olhos para se ver refletida. Fechou-os novamente.
“Há dois tipos de pessoas, as que andam de transportes públicos, e as que não.”
“Há dois tipos de pessoas….”, o cérebro parou por um momento, e os olhos abriram-se contra a vontade dela. E ali estavam, frescos, esses olhos onde agora se via refletida, não sabendo se ela própria era das pessoas que estavam satisfeitas ou sempre à procura de algo novo.
Quis fechar os olhos, esquecer a urgência, deixar o cérebro ir.
Tinha ela ido explorar o mundo? Ou sorteado obstáculos? Ou…?
Os olhos aproximaram-se.
“Há dois tipos de pessoas, e depois o resto de todos nós”, murmurou-lhe ao ouvido a detentora dos outros olhos.
Patrícia Louro
Falámos do que trouxemos para a balança, este ano tão desequilibrada. Flámos das angústias e da esperança. Estes foram os nossos balanços do ano.
O futuro chegou.
Disso a convicta certeza.
A Morte é certa, na Vida.
O Futuro também o é..
Seja Ele, curto ou comprido, nunca por cumprir.
Então aprendemos, Humanidade a entender o Presente no Futuro…
Este, mais inabalável e consistente.
Exigente, que não mente, criar desta prenda em Natal,
Um clarão, sempre além em felicidades, nos futuros recorrentes e tão próprios
Porém, um verbo… * O* Verbo… amar.
Há que teimar,
Há mais do que nunca, acreditar.
O desconcerto do mundo ou as angústias de uma espécie que inventa gaiolas para os
outros e desta vez foi engaiolada.
Se há coisa que sei da espécie humana, é que a memória tem asas de pássaro. Os
humanos são animais que morrem por camadas, o passado vai-se esfumando e amanhã
irão para a praia, afogar o azul da neura no azul das águas.
Amanhã, esta pandemia fará bocejar os estudantes nas aulas de História e as datas, os
países, o número de mortos figurarão em cábulas escondidas nas mangas dos casacos.
Mal de quem ficou sem pão, sem trabalho, sem casa, sem pais, sem ninguém.
Mal de quem viu a vida transformada numa concatenação de desgraças como uma
tragédia grega, sendo o vírus, qual caixa de pandora, a origem de todos os males
vindouros.
Todos os outros continuarão como se nada fosse.
E no cinema, alguém avisará o protagonista do Regresso ao Futuro para não conduzir o
carro da máquina do tempo para o famigerado ano de 2020.
E o público rirá entre pipocas.
Helena Campos
Nesta sessão, recordámos Enid Blyton (GB, 1897 – 1968) que ficou conhecida pelas suas colecções de livros de aventuras para crianças e adolescentes.
O seu primeiro livro foi publicado em 1922 e o último em 1965. Terá escrito perto de 800 livros – nos anos 50, publica em média 50 livros por ano, o que deu origem a rumores de que recorreria a escritores-fantasma, o que sempre negou. Embora hoje criticada pelo seu estilo repetitivo, moralista e pela visão preconceituosa do mundo, os seus livros acompanharam milhões de jovens.
As colecções que criou incluem: Os Cinco, Os Sete, As Gémeas no Colégio de Santa Clara, O Colégio das Quatro Torres, Colecção Mistério, Noddy.
Depois de falarmos um pouco da autora e dos principais traços das histórias de aventuras, criámos as nossas.
Sozinha em casa
A manhã ia alta quando Milai acordou, num quarto que o frio tornara desconhecido e cujas vidraças despidas de estores permitiam a invasão do cinzento deprimente do exterior.
Por mais que se esforçasse, Milai não se reconhecia naquele ambiente, habituada que estava a ser acordada pela mãe, ao calor do aquecimento central, dos edredons fofos, dos reposteiros de cores cálidas…
Saltou da cama e não encontrou os chinelos, os pés nus encolhiam-se na madeira fria e seca, tampouco encontrou o roupão… A porta estava aberta e dava para um corredor desconhecido, cujas paredes não ostentavam nem quadros nem fotografias familiares. Avançou a medo – que casa era aquela, que chão nu e frio era aquele, onde estava a mãe que não a despertara?
Ao fundo do corredor, uma porta escancarada emoldurava uma sala revolvida – livros pelo chão, gavetas esventradas, almofadas revolvidas e cadeiras de pernas para o ar. A confusão, evidente, contaminou-lhe o pensamento, que se recusava a perceber o que via.
Um gemido em forma de miado e uma bola de pelo que lhe chocou nas pernas sinalizaram a existência de outra vida – não necessariamente a que mais gostaria de ter encontrado. O susto foi potente, deixando-a pregada no chão, o coração a bombar a toda a força, e o cérebro a gritar – e se tem pulgas, e se tem pulgas, e se tem pulgas…
Fechou os olhos. Queria a mãe, queria a sua casa, queria a sua vida de volta.
Acordou na cama fofa de edredons de cores garridas, o gato deitado aos pés da cama, alguém lhe media a febre enquanto outra pessoa lhe massaja a fronte com um pano quente embebido no que, pelo cheiro, seria álcool. Sentia-se gelada e tremia e batia os dentes como castanholas.
- Milaizinha querida – era a voz do pai –, nossa heroína! O teu sonambulismo hoje salvou-nos de sermos assaltados. Os ladrões, quando te viram à porta do escritório, pensaram que eras uma alma penada e depois o gato atirou-se a eles e deixou-lhes as caras numa chaga, um deles é alérgico a gatos e teve uma crise de asma, foi levado no 112, não se sabe se escapa.
Paula Carvalho
I - Um conto à nossa maneira
Exercício inspirado no texto de Raymond Queneau, Un conte à votre façon.
Em grupo, os participantes escreveram duas histórias diferentes. Depois, combinaram-se os contos com as frases que indicam percursos diferentes da história.
A escrita colaborativa decorre, assim, a três níveis: escrita em grupo, recombinação das histórias dos grupos, escolha do leitor da história que quer ler.
1
Era uma vez um Zé Ninguém que pedia nas ruas de Lisboa.
Se não se interessa por zé ninguéns, vá para 2
Se está satisfeito, vá para 3
2
Era uma vez um cavalo de corridas, que vivia numa coudelaria luxuosa e todos os dias de manhã ia treinar.
Se não se se interessa por equinos vá para 1
Se está satisfeito, vá para 4
3
Uma noite teve um sonho psicadélico em que vivia num palácio rodeado de ouro e prata.
Se não quer que ele sonhe, vá para 4
Se quer saber o que significa o sonho, vá para 5
4
Uma noite não conseguiu adormecer, então decidiu passar a noite acordado a polir metais e a relinchar contra o seu destino.
Se quer saber o que aconteceu a seguir vá para 6
Se quer que quer ele durma um bocadinho, vá para 5
5
Quando acordou, veio-lhe à cabeça o ditado popular «Querer é poder!» e percebeu imediatamente o significado do sonho.
Se gosta deste ditado, vá para 7
Se não gosta de ditados populares, vá para 6
6
Quando amanheceu, consultou o seu horóscopo: finalmente tinha todos os planetas alinhados para triunfar, o que nunca tinha sucedido.
Se não acredita em horóscopos vá para 5
Se quer saber o que aconteceu depois, vá para 7
7
Essa revelação deu-lhe coragem para declarar o seu amor a uma senhora benfeitora que o ajudava frequentemente.
Se quer seguir a história de amor, vá para 9
Se está a achar isto enjoativo, vá para 8
8
Irritado, decidiu que era altura de se vingar da Maria Antonieta que lhe tinha um coice e uma dentada numa orelha e que agora era famosa por ter começado a falar inglês sem ninguém a ter ensinado.
Se quer saber o que se passou depois, vá para 10
Se preferia uma história sem ódios antigos, vá para 7
9
Mas o objecto do seu amor rejeitou-o porque o ajudava em nome de Cristo.
Se quer dar mais uma hipótese ao amor, vá para 11
Se quer saber o que aconteceu a seguir, vá para 8
10
Quando se encontrou cara a cara com a sua inimiga, percebeu que era estrábica e que nem sequer o tinha visto no primeiro dia.
Se quer saber o que se passou a seguir, vá para 11
Se não quer saber mais nada, vá para 12
11
Completamente baralhado, foi para uma taberna e pôs-se a beber. Até que, de repente, encontrou quem viria a ser o amor da sua vida: uma fadista que cantava tristemente ao som das guitarras.
Se quer saber o que isto significa, vá para 12
Se nada na vida tem significado, vá para 13.
12
Afinal, nada importava, pensou para si próprio. E disse: a vida são dois dias e o carnaval são três.
Respirou fundo e decidiu mudar de carreira e aprender a falar russo e jogar xadrez.
FIM
13
Reflectindo, disse para si próprio: vida é um acaso absurdo, é uma lotaria imprevisível.
Respirou fundo e decidiu escrever versos para um fado que veio a tornar-se um grande êxito português.
FIM
Participantes:
Conceição Brito
Giuseppa Giangrande
Helena Campos
Lídia Lopes
Patrícia Louro
II - Histórias cruzadas
Com uma estrutura fixa, as histórias multiplicam-se em ínúmeras e inesperadas versões. Cada participante escreveu uma história. Depois combinámos num quadro onde cada quadrado pode combinar com qualquer outro. Alguns resultados são mais surrealistas do que outros - mas levantam boas ideias para próximos textos!
Participantes:
Conceição Brito
Giuseppa Giangrande
Helena Campos
Lídia Lopes
Patrícia Louro
III - Textos de 10 minutos escritos com palavras obrigatórias sugeridas pelos participantes
Rosa
O dia começou cor-de-rosa. Bom. Não era bem cor-de-rosa, mas o ser que nos ocupa esta história não é um designer gráfico a trabalhar com quadricromia, portanto digamos que o dia começou cor-de-rosa.
Era um dia como outro qualquer. Era um dia como só esse dia podia ser dia. Era um grande dia. Ou pelo menos era um grande dia para o pequeno ser que nos ocupa esta história: uma lagarta lagartinha, feliz como uma perdiz, ou o seu equivalente em mundo lagartil: viver num ramo de carvalho, alto, muito alto (lembre-se, caro leitor, do tamanho de uma lagarta, se ainda conseguir evocar os seus dias de infância. Um carvalho é, para uma lagarta, e como se dizia nos meus idos tempos, bué da alto).
Mas voltemos à história que nos ocupa. A lagarta acordou com um céu cor-de-rosa. Espreguiçou-se, comeu meia folha de carvalho, e fletiu os músculos de lagarta (bué da pequenos, mas súper poderosos), e fez uma corrida até um ramo mais baixo. Correu, correu, correu, chegou. Bebeu a água das folhas do ramo mais baixo do carvalho, para isso tinha descido.
E porque esta é uma história sobre pequenos tamanhos, nesse ramo baixo do carvalho, a feliz como uma perdiz lagarta encontrou-se com o seu destino, uma criancinha de idade indeterminada para a lagarta (que não percebia muito de humanos, mas nós podemos dizer que teria uns 6 ou 7 anos), e brandia como uma espada um abridor de cartas em forma de punhal, roubado à socapa, do home office do pai (e por uma vez, não há nenhuma culpa da mãe da história que nos ocupa).
A lagarta curiosa desceu um pouco mais. A criança distraída subiu o braço. E desse encontro infeliz, metade da lagarta caiu no chão, e a outra metade ficou agarrada ao ramo.
Quanto à criança, foi chorar para o colo da mãe.
Patrícia Louro
Tema: Microcontos
1.º Um microconto a partir da história A Princesa e a Ervilha.
Era madrugada quando Nini saiu da rave, rave privada cujo destino era tão mas tão secreto que só se conhecia quando lá se chegava, seguindo indicações hieroglíficas de sms privadas. Uma vez mais, como perdera o iphone última geração, não sabia onde estava. Olhou os sapatos, tristes, mais um par roto. Suspirou, antecipando explicações sobre o telefone perdido e os sapatos feitos num trapo.
Foi atingida pela escuridão da noite e pela depressão Bárbara, cega por ambas. Caminhou ao acaso. Um jorro de água, nascido de fonte incógnita, vergou-a.
Acordou numa cama de dossel, fofa como chantilly ou claras em castelo ou não estivesse deitada em cima de inúmeros edredons e colchões. Pensou que morrera com entrada directa no paraíso até que entrou o homem velho, de coroa na cabeça, com uma taça fumegante e lhe disse: “Hoje temos favas com chouriço.” “Oh– exclamou ela - não pode ser antes ervilhas com bacon e ovos escalfados?!”.
Paula Carvalho
O segredo do cão
Trabalhara a vida toda, enriquecera, viajara pelo mundo, conhecera lugares onde ninguém jamais havia pisado, amara e fora amado. Entretanto, ao completar 60 anos, Pedro não se considerava um homem feliz. Faltava-lhe algo. Procurou todo tipo de terapia para descobrir que mal secreto enchia seu coração de melancolia. Tudo em vão.
Começava a conformar-se com a ideia de ser para sempre um homem infeliz quando, um dia, ao caminhar por um parque, viu um velho com um cão. O velho tinha o semblante mais sereno que Pedro havia visto em sua vida. Aproximou-se e perguntou:
- Velho, pareces tão feliz. Como conseguiste atingir felicidade tão plena?
- Vês o meu cão? Observa como ele corre e se diverte. Ele não pensa no que lhe falta. Apenas celebra o que tem. Aprendi com ele o segredo da felicidade.
Paulo Lima
As ervilhas mágicas
Era uma vez uma rapariga pobre que vivia no campo junto à sua mãe. Não tinham nada, apenas conseguiam comer graças à uma planta de ervilhas. A rapariga era muito bonita. Um dia passou por ali, perto da sua casa, um príncipe que se apaixonou por ela. Queria casar com ela, mas o rei e a rainha opunham -se à essa ligação por causa da pobreza da rapariga.
A pobrezinha ficou muito triste e chorou muitas lágrimas que caíram ao pé da planta de ervilhas. Essas tornaram-se numa chuva de ouro, pelo que a rapariga ficou muito rica e pôde casar com o príncipe.
Giuseppa Giangrande
O Exame
O João estava cansado de procurar a mulher com quem queria partilhar a sua vida. Bonitas, feias, ricas, pobres, cultas, alegremente ignorantes, percorrera já uma gama imensa de candidatas a futuras esposas.
O seu desejo era que a figura idealizada fosse culta, bem-educada e, acima de tudo, com impecáveis maneiras. Lembrava, agoniado, a última candidata que quase o matara de vergonha, no São Carlos, ao bater palmas nas pausas da orquestra.
Até que conheceu a Teresa.
Ela apareceu à hora certa, no local combinado. Iam jantar a um restaurante chique, muito chique, e o teste à mesa seria implacável: um exército de talheres, uma congregação de copos, um aglomerado de acepipes.
Imperturbável, ela sugeriu a ementa com a finura de uma gourmet, aprovou os vinhos como verdadeira connoisseur e dispensou o aperitivo.
A refeição decorreu suave como uma sinfonia. O garfo certo, o copo adequado, leves toques nos lábios com o guardanapo, sem esfregar.
Voz suave, conversa inteligente, sentido de humor.
Que maravilha, pensou. É esta!
- O que quer para terminar? perguntou ele.
- Apenas um palito para tirar este pedaço de carne que ficou preso nos dentes – respondeu ela, enquanto adiantava o serviço usando, delicadamente, a unha do dedo mindinho.
Conceição Brito
2.º Um conto de 100 palavras com o início, «Chegara a hora».
Pontualmente
Chegar à hora foi disciplina auto-imposta na sua longa vida de adulta, um misto de carta de alforria e de foral dos atrasos traumáticos duma educação ao Deus-dará. Da libertação nasceu a nova escravidão, a pontualidade de chegar antes da hora, e, depois, muito antes da hora. Em dias de compromisso matutino, agendava três despertares, dois em despertadores de corda e um do serviço homónimo dos telefones-de-lisboa-e-porto, de que nunca precisava pois despertava de hora a hora, sempre antes da hora.
Partiu um dia de madrugada, sem hora marcada, ainda assim na sua hora.
Paula Carvalho
Despedida
Chegara a hora. Jorge pegou a mala, apagou as luzes e saiu.
O carro já o esperava na frente do prédio. O motorista cumprimentou-o com um aceno de cabeça, guardou sua mala no banco da frente, assumiu seu lugar e deu a partida.
Jorge pediu-lhe que desligasse o rádio. Pela janela, via desfilar pela última vez as paisagens tão familiares.
Lúcia o esperava no porto. Abraçaram-se longamente e ele embarcou sem olhar para trás.
Permaneceu no convés até que o navio tivesse deixado o continente para trás. Abriu a urna e jogou as cinzas do seu passado no mar.
Paulo Lima
Inspiração em Oscar Wilde
O comboio partiu com a minha vida dentro. Fiquei no cais à espera que a minha vida regressasse e nunca mais regressou. Comecei a percorrer a linha férrea no seu encalço, na peugada do meu outro eu, o caminho alternativo que eu deveria ter percorrido. Era tempo de juntar-me ao que eu poderia ter sido. Chegara a hora.
Helena Campos
Disse-me o Poeta, «Antes o atrito que o contrato»
Chegara a hora, tardara, mas finalmente nos encontrou.
Por debaixo de tantos cubos de gelo submersos em solidão, ele contemplava as bolinhas de sabão de arco íris trajadas sopradas divertidas imparáveis brincalhonas...
O milagre.
Éramos tão sós e na solitude chegara a hora.
L@dyBirdBeL
(fotos: pegandawlbuilt.com)
Michelangelo, Escravos
Tema: Era uma v... | Textos inacabados
1 - O poema fragmentado
A partir de uma versão parcial, e sem conhecerem o original, os participantes completaram as frases de um poema, fazendo-o seu.
O meu poema teve um sonho:
Diz às palavras vivam
E ide procurar conhecimento;
O meu poema tem o brilho do saber.
Posso vê-lo cintilando
Em cornucópias de prata
Sem pressa
Ou receio.
Pergunto-lhe: com que sonhaste?
Mas apenas me envolve
E fica ali a pulsar na dádiva da plenitude.
Conceição Brito Lopes
O meu poema teve um furo
Diz às palavras: não sei se tenho salvação
e ide procurar ajuda.
O meu poema tem remendo
posso vê-lo a insuflar esperança.
Em fé
sem medo de morrer de velhice
ou de doença.
Pergunto-lhe: mas vais ficar bem?
mas apenas me devolve um suspiro
e fica ali apenas a existir.
Tânia Teixeira
O meu poema teve um problema
Diz às palavras: Voem no céu
E ide procurar versos.
O meu poema tem agora versos
Posso vê-lo feliz
em companhia dos seus versos
sem preocupações
ou tristeza.
Pergunto-lhe: O que é que te deixa ficar tão feliz?
Mas apenas ouve a voz dos seus versos
E fica ali a regalá-los.
Giuseppa Giangrande
O meu poema teve um bloqueio
Diz às palavras: regressem
E ide procurar as fontes
O meu poema tem angústias de alma, febres de perfeição
Posso vê-lo a tremer, a hesitar
Em tardes outonais de fim de linha
Sem rumo
Ou ponto de mira
Pergunto-lhe onde está
Mas apenas murmura em surdina algo desconexo
E fica ali a olhar o vazio
Helena Campos
O meu poema teve um sonho do qual acorda pensativo
Diz às palavras: deixem-me só
e ide procurar outras palavras que as substituam e sejam mais verdadeiras.
O meu poema tem esperança
Posso vê-lo desnudo
em busca da raiz da emoção
sem vocabulário
ou gramática
Pergunto-lhe: o que queres dizer afinal?
mas apenas se cala
e fica ali a página em branco
Paulo de Lima
Poema original que inspirou o exercício:
O meu poema teve um esgotamento nervoso.
Já não suporta mais as palavras.
Diz às palavras: palavras
ide embora,
ide procurar outro poema
onde habitar.
O meu poema tem destas coisas
de vez em quando.
Posso vê-lo: ali distendido
em cama de linho muito branco
sem perspectivas ou desejo
quedando-se num silêncio
pálido
como um poema clorótico.
Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti?
mas apenas me fixa o olhar;
fica ali a fitar-me de olhos vazios
e boca seca.
Daniel Jonas, in Os Fantasmas Inquilinos
2 - Fragmentos que contam histórias.
É possível contar uma história apenas com frases inacabadas? Ao fazer o exercício, percebemos que deixar por dizer dá outra expressividade ao texto.
Sonhava acordada com...
Ela pediu-lhe que...
Assustei-me e...
E não foram felizes para sempre porque...
Sem saber como..
A luz apagou-se...
Lembrou-se...
Naquela madrugada...
Ainda o sol não tinha raiado...
Sonhava acordada com...
O passado...
Ainda mal acabara...
Quando o carro...
Assustou-se...
Ele nunca mais lhe respondeu e...
Se não chover...
Quando chegaram ao funeral...
Ela pediu-lhe que...
Era uma vez.
Tânia Teixeira
Já não sou
Odeio quando
Ouvi algo de
Não tive como
Enganei-me
Não soube escolher
O tempo
Não fui a
Não disse que
Hoje não há
Dizes para
Insistes em
Não há
Já não há
O tempo
Nunca será
Helena Campos
Era uma vez
A madastra fazia anos que
O príncipe sempre com medo de
Até o dia que
A bebida no copo estava
Um gole e o príncipe
No meio da noite chega o
Beija o príncipe e ele
Fogem os dois de mãos
A madastra tenta
Mas volta com as mãos
A princesa decide que
E a madastra perde sua
Paulo de Lima
3 - Non finito em texto
Este exercício foi uma tentativa de exploração do non finito em texto.
O non finito nas artes plásticas (exemplo da reprodução de Michaelangelo acima) é uma obra inacabada que permite espreitar para as marcas do criador, para o processo criativo. Será possível fazer o mesmo em texto? Experimentámos.
...
Às 12 badaladas Branca pica-se no fuso do tear e desmaia. Nesse mesmo momento, a sua preciosa carruagem transforma-se numa abóbora e os sete anões acorrem a salvá-la.
(Estou tramada! Espelho meu, espelho meu, haverá alguém que confunda mais as histórias de princesas do que eu? Nunca sei quem é maltratada pela madrasta - serão todas? - ou pica o dedo, ou come a maçã, ou tem um príncipe - ah! isso sei, são todas!)
...
A luz da manhã rompe-lhe o sono e a ladeá-la está um monstro que a assusta.
- Calma Bela! - responde-lhe ele.
- O que é que aconteceu?
- Foste amaldiçoada pela rainha má, mas eu vou levar-te para longe e ficarás sã e salva.
- Como? - responde ela atordoada.
- Neste tapete mágico!
(Mentiria se dissesse como me desenvencilhar deste problema. Ah! Com um clichê!)
...
Num castelo num alto de um monte verdejante, a princesa e o seu amado viveram felizes para sempre.
Tânia Teixeira
…….de Neve e……
……….e, finalmente! alisou a última das sete caminhas. Olhou em redor, com cuidado, para não bater com a cabeça no tecto baixo [adjectivo redundante?]. O espelho do quarto continuava totalmente tapado (tantas recordações más) [mas ainda não quero falar disso ]
e os seus amiguinhos em breve chegariam para almoçar. Que vida horrível, sempre na cozinha!!
Só de pensar em comida, ficou com fome (no palácio comia-se tão bem! e tinha aios para servir, não tinha que cozinhar)
(…..) lá estava a maçã a olhar para ela, a chamar por ela. Afinal não a ia repartir com os sete anões, ia comê-la já, como a velha recomendara.
……ainda teve tempo para perceber que o egoísmo pode ser perigoso.
Conceição Brito Lopes
Branca de Neve estava a preparar o lanche dos anos, que logo chegariam do trabalho, quando ouviu batidas na porta. Intrigada, foi abrir. Era uma velha/senhora (decidir qual palavra usar. Não quero que digam que discrimino os idosos etc. e tal)
(Talvez seja mais verossímil se ela olhasse antes quem está batendo. Mas pode quebrar o ritmo.)
Boa tarde, minha jovem.
Boa tarde, senhora. Em que posso ajudá-la?
(Ressaltar o caráter ingénuo da Branca de Neve.)
Tenho aqui umas maçãs que estou vendendo para comprar comida para meus netinhos. A senhora gostaria de comprar uma?
Claro, minha senhora. Espere aqui que vou pegar o dinheiro.
Ela foi até a cômoda, pegu umas moedas e voltou para a porta. Pagou a velha e pegou uma maçã. (Não, a velha tem de dar a maça envenenada para ela. Ou todas as maçãs do cesto estão envenenadas?)
Parece muito gostosa mesmo.
Dê uma mordida para ver como é suculenta.
(Fazer suspense com a mordida?)
Paulo de Lima