LABORATÓRIO DE TEXTOS
Esta é uma fresta por onde se pode espreitar o nosso laboratório.
Gostamos de experimentar textos, inventar espaços e condições especiais e neles deixarmo-nos espantar pelo que acontece.
Aqui, recolhemos algumas das linhas que vão sendo criadas em diferentes oficinas. Algumas delas, dirigidas a antigos alunos, como a Naftalina, são iniciativas regulares; outras, abertas a quem por cá passa, são encontros e iniciativas extra-aulas. Placas de Petri.
Os textos, produzidos no tempo e condições das sessões, têm como único — e suficiente — critério de publicação a vontade do seu autor de vê-los aqui reproduzidos. Experimente ler, mas proteja-se: o prazer da experiência pode ser contagiante.
«Escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve.» Vergílio Ferreira
Unidos, separados, rivais ou cúmplices, a relação entre o «eu» e o «eu escritor» ocupou parte da sessão de hoje. O ponto de partida foi o texto seguinte de Jorge Luís Borges:
«Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, a olhar para o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome numa lista de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro partilha comigo estas preferências, mas de um modo vaidoso transformando-as em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa tramar a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa nada confessar que alcançou certas páginas válidas, mas estas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição. Além disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro […] Há alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias de subúrbio aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo perco e tudo é do esquecimento, ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página.»
Jorge Luís Borges, Borges e eu
O laranjinha de olhos verdes saltava-me para o colo e estendia o dorso que eu afagava, numa volúpia de carícias, até à cauda ondulante. Quando eu parava, miava deliciado e colocava as patas dianteiras nos meus ombros, encostando os bigodes à minha face.
E assim ficava eu tardes de verão com um gato agarrado a mim, num abraço laranja e felpudo. Nesses dias, tínhamos longas conversas em gatês em que nos compreendíamos perfeitamente. Ele lamuriava-se nos seus miados delicados e eu respondia, na mesma língua, numa toada íntima.
Certo dia, a porta ficou aberta e ele atreveu-se a conhecer mundo. Foi barbaramente abocanhado por um cão.
E, no entanto, nunca escrevo sobre isto.
Eu odeio cães desde a infância, seres quezilentos de bocarra escancarada, sempre a ladrarem estrondosamente, a rosnarem com os dentes afiados ávidos de morder, e na sua malvadez, assassinaram o meu querido gato. Eu odeio cães, mas apesar disso, são eles que aparecem nas minhas ficções, são eles que são fiéis às minhas personagens, são eles que ganem de mansinho, de olhos a pedir festas, nas entrelinhas dos meus textos ficcionais.
Igualmente, eu que toda a vida fiz fila nas paragens de autocarro e desci escadas de metro por entre as turbas agitadas, eu que nunca sequer tirei carta de condução, apresento as minhas personagens ao volante de potentes automóveis, a atirar para as janelas embaciadas espirais de fumo de um cigarro que eu nunca fumei.
«Não só não me importo, como acho uma honra ser pirateado», Miguel Esteves Cardoso
O intertexto cruza linhas de vários autores para criar uma nova narrativa, apropriada e recontextualizada pelo autor. É uma das forma mais irresistiveis de partir para a escrita e de soltar a criatividade. Também para o leitor há o prazer em descobrir as «piscadelas de olho» que o autor vai deixando com citações e referências.
Na sessão, partimos de exemplos visuais, o Caravaggio da Cindy Sherman, por exemplo, e lemos Alberto Pimenta e Chico Buarque. Como material base para o intertexto, os participantes tinham alguns textos bem conhecidos: o Fogo que arde sem se ver, a Balada da Neve do Augusto Gil, os primeiros artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma lista de provérbios, um excerto do Cântico dos Cânticos o início do Inferno de Dante. Os participantes trouxeram ainda Fernando Pessoa.
Pau que nasce torto nunca se endireita.
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, para inglês ver. No final do dia:
Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
Á parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Sonhos que nunca se concretizam porque a tesoura do mal é incansável na poda das minhas vãs esperanças de realizá-los.
E é assim que
No meio do caminho da vida
vi-me perdida numa selva escura
E uma infinita tristeza
uma funda turvação
entra em mim, fica em mim presa
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Helena Campos
A partir de: provérbio popular, Declaração Un.Direitos Humanos, Álvaro de Campos (Tabacaria), Dante (Inferno), Augusto Gil (Balada da Neve).
Duvidar é humano e eu sou apenas humana (completo)
Fantasmas na biblioteca (completo)
O desafio (completo)
O Labirinto das Escolhas
Apareceram-lhe 5 ofertas de emprego ao mesmo tempo.
Na vida é sempre assim: durante largo tempo não temos nada, mas quando aparece algo, aparece às catrefadas, um engarrafamento de oportunidades e o peso inexorável da escolha.
E escolhemos sempre mal, e depois a culpa, a responsabilidade, a suprema angústia sartreana de quem está condenado à liberdade.
Sempre fora torturada por indecisões intermináveis e naquele instante voltou à estrada que se bifurca, à vertigem da decisão, a memória que se repetirá para toda a vida: porque não escolhi ao contrário?
Desenhou uma grelha com 6 linhas e 3 colunas onde escreveu as 5 hipóteses, vantagens e inconvenientes de cada uma, na senda de um qualquer algoritmo de engenharia decisional que lhe iluminasse a escolha acertada.
O algoritmo não surgiu, as vantagens e desvantagens cintilavam aleatoriamente em toda a tabela.
Era um momento pluripotencial, em que tinha abertos todos os destinos, todas as possibilidades, como um deus cego, ou como um escritor diante de uma página em branco.
O que fazer então? Decidiu entregar-se à sorte. Preparou cinco papelinhos em que escreveu os nomes dos cinco empregos - entre eles, havia um trabalho numa escola, um emprego de secretária, uma oferta para trabalhar numa editora em Lisboa, o que teria significado deixar a sua cidade, mas quem sabe... às vezes as maiores incógnitas escondem surpresas agradáveis - e começou o sorteio da sua lotaria. Tirou à sorte o primeiro papelinho e saiu a oferta de trabalho em Lisboa. Ficou um pouco perplexa e já que não estava convencida quanto àquele primeiro sorteio, tirou à sorte novamente. Parecia que o acaso estava a fazer pouco dela, porque saiu outra vez a oferta de emprego em Lisboa... Interrogou-se sobre aquela coisa tão estranha, estava preocupada com o dilema, agora o importante era saber o que ela verdadeiramente queria, ou seja... será queria realmente dar um salto para o desconhecido?
Novamente perante aquela encruzilhada .
Ou escolher aleatoriamente o que a sorte lhe destinava ou interiorizar bem o que queria fazer
Voltou a fazer uma tabela analisando os pontos negativos e positivos
De facto sair da sua zona de conforto onde se movimentava com segurança e partir para a cidade grande, impessoal, sem pontos de referência eram um ponto negativo
Iniciar um trabalho que parecia aliciante pois tratava-se de um projecto inovador com uma equipa jovem que parecia integrar- se no seu perfil eram um ponto positivo.
Resolveu contactar o responsável da empresa para esclarecer algumas duvidas e o resultado foi muito esclarecedor poderia ficar a trabalhar em casa, os encontros de grupo eram na maioria das vezes on-line, só precisava de ir a empresa uma vez por semana e ordenado era aceitável para uma principiante.
Então estava decidido não?
Não! o bichinho da dúvida persistia e se … na outra empresa as condições fossem ainda melhores?
Tomou então uma decisão, fez um novo quadro com todas as questões que queria perguntar nesta outra empresa com o registo de impressão positiva ou negativa para cada uma das questões e no final teria mesmo que decidir.
Então ligou…
- Memorex Limitada, bom dia!
- Bom dia... é por causa do anúncio de emprego...
- Senhorita, a entrevista é hoje, daqui a 20 minutos! É vir já, é vir já!
A voz urgente não lhe dava outra alternativa. E, se calhar, o melhor era não ter tempo para pensar.
Saíu do metro a correr e deu logo com o nome da firma em letras elegantes numa placa de vidro. Entrou no prédio e abriu o elevador - era antigo, de madeira, ferragens douradas e até com banquinho de veludo vermelho encostado ao espelho. De que tempo viria?
Estendeu a mão para a porta do escritório que se abriu de par em par. Estava numa enorme recepção de tecto alto pintado de anjos rosados e nuvens gordas.
- Boa tarde, senhorita!
Baixou os olhos até ao seu interlocutor.
- Amado Rubro, gerente. Por aqui, por aqui, venha senhorita...
Seguiu o homem por um longo corredor de tapete alto e fofo. As portas de um lado e outro mostravam gabinetes - um totalmente verde, decorado com plantas carnudas, outro, com tapeçarias indianas nas paredes, um, de espelho, outro, branco leitoso.
Entraram numa sala de reuniões. Trazia o curriculum na mão.
- Sim, sim, tudo visto, é para começar já..
- Mas..., o salário..., as condições...., o horário... ? - a lista de perguntas tão bem ensaiada esbarrava com a pressa frenética do gerente.
- É tudo como está na carta da senhorita. Vamos começar, que temos muito que escrever!
- Mas... escrever o quê, para quem, enfim... qual é o vosso ramo...?
- Memorex, senhorita, Memorex: fazemos memórias, novas recordações à la carte para clientes especiais. Vamos, vamos...
O seu novo trabalho tinha três tempos distintos: o de pesquisa, o da leitura e o de escrita. Levou-a a bibliotecas, a arquivos, tanto públicos, como pessoais, debruçando-se sobre inúmeros documentos, diários, cartas, fotografias, enfim o essencial de uma vida. Passava desses materiais, para as entrevistas, para os relatos na primeira pessoa, embora soubesse que quem conta acrescenta sempre um ponto. O passado ia-se compondo à frente dos seus olhos. Lia, relia, de forma objetiva, e só então, passava para a escrita, para a parte ficcionada, embora fosse importante ter um referente real.
Era essencial que a história fosse verosímil, que estivesse enquadrada no espaço e no tempo certo, senão, havia o sério risco de a invenção ser descortinada. Na Memorex, Lda. isso era um pecado capital, que poderia incorrer em processos morosos por parte dos seus famosos clientes, que pagavam as memórias em peso de ouro. Os clientes gozavam de um estatuto de privacidade total, levando a que todos na empresa tivessem assinado um contrato de confidencialidade, redigido pelo melhor escritório de advogados da cidade. Quando havia problemas no escritório, vinha sempre um batalhão deles, para ajudar nas questões legais.
Descobriu o seu talento para criar memórias infalíveis, tão possíveis de serem reais, que ninguém seria capaz de apresentar prova contrária. O seu momento favorito, era sentar-se à secretária de carvalho castanho escuro e deixar os dedos voar no teclado do computador. Quanto mais escrevia, mais sentia que tinha encontrado a sua vocação. E quando os clientes a pediam especificamente, embora trabalhasse sobre um pseudónimo, dava-lhe uma enorme alegria, sentia-se reconhecida. Era quase irónico, que ao investigar a vida de outras pessoas, tivesse começado a compreender de outra forma a natureza humana, dando-lhe também a ela uma segurança nos seus passos. Ela mais que ninguém, com as suas indecisões e com o seu passado desinteressante, conseguia compreender porque os clientes pagavam por essas memórias, por isso era tão boa no seu trabalho. Enquanto escrevia memórias, ia ao mesmo tempo escrevendo em paralelo um novo capítulo na história da sua vida.
Helena Campos
Giuseppa Giangrande
Isabel Soares
C.Borges
Filipa Bernardo
Ludmila e os Anjos
C. Borges
Isabel Soares
Giuseppa Giangrande
Tiago Pina
Paula Carvalho
A oliveira que matava miguelistas
Tiago Pina
Paula Carvalho
José Maria Covas
Helena Campos
Giuseppa Giangrande
Recomeçar do zero
Giuseppa Giangrande
C. Borges
Lídia Vieira
Paula Carvalho
Helena Campos
Uma gaivota voa livre e feliz no céu. Ela está muito feliz por ser uma gaivota, porque não tem laços, pode ir e voar aonde ela quer, apesar de ter a sua casinha numa árvore no Miradouro da Graça em Lisboa. O que é mais interessante é que ela um dia pode estar em Lisboa, um dia na Sicília, um dia em África, um dia em vi rem ajuda Goa… e ainda mais interessante é que ela todas as vezes que volta para Lisboa, pode contar muitas histórias, até às crianças que nos dias de sol brincam nas ruas perto do Miradouro e às pessoas que lhe dão alguma migalha para comer. Acabou de voltar esta vez do Japão e está a contar a história de uma cerejeira que guardava um segredo…
Pois contara-lhe a cerejeira quão estranha se sentia com as modificações sofridas ao longo de todos os dias do ano: à explosão branca e perfumada que lhe vestia os ramos, sucedia-se a queda do virginal manto e o crescimento de frutos redondos e carnudos, vermelhos côr de pecado, após o que chegava uma pausa fresca e verdejante, mas, quando mais precisava de aconchego e agasalho, entrava numa hibernação despida e nua. Isto ano após ano, sem pausa, descanso, alteração ou imprevisão. “Quem me dera ser gaivota!”, suspirara a cerejeira “Partir e conhecer outros mundos, navegar pelos ares, ver as coisas ao longe e ao perto, não ter raízes...”
Ao suspirar com mais força, não é que a cerejeira tremeu e se desequilibrou? Quando as raízes se soltaram da terra, o ruído das pedras da calçada a chocarem umas contra as outras foi intenso e ensurdecedor. Uma senhora idosa que trazia o cão pela trela ainda se magoou ao tentar desviar-se de uma mão-cheia delas que a atingiram de raspão e o poodle da senhora perdeu o piu com o golpe que as pedras lhe fizeram no dorso.
Entretanto, a cerejeira inchada com o sufoco de perder a sustentação, só pensava em pôr-se em pontas, mas as raízes contorcidas em nada a ajudavam. Via-se já moribunda e derrotada para sempre nos seus sonhos de liberdade e vida mais ampla. No meio de tanto pânico, perdeu os sentidos.
Acordou com a frescura da manhã. Os jardineiros da Câmara esforçavam-se por a pôr em pé, e, à pergunta “Prontos?” reergueram-na e replantaram-na numa operação delicadíssima.
A cerejeira gritava debalde: “Não, não me prendam! Eu quero mudar de vida! Deixem-me voar.” E os homens, já muito transpirados, iam dizendo: “Pobrezinha, uma árvore tão bonita de que todos gostam. Merece bem uma segunda oportunidade!”
E os calceteiros convocados completaram a obra de restauro, perante o choque da bela cerejeira.
Mas à segunda foi de vez. Foi numa noite de breu povoada pelo silêncio absoluto. Ginasticou as raízes com toda a fúria que tinha até eclodir daquela prisão subterrânea e projectar-se nos céus. Falharam-lhe as asas que não tinha, sacudiu os galhos, fracos músculos, contra o vento e acabou por cair numa lixeira ali perto onde um carro do lixo descarregava caixotes.
- Que é isto? Agora caem árvores do céu? – espantou-se um funcionário
- E é uma cerejeira! Alguém que não gosta de cerejas – disse outro
- Mas ela vinha a voar!
- Alguém que a tinha num vaso num andar alto e a jogou fora. Vou levá-la para o meu quintal.
Ainda estremunhada pela queda, a cerejeira tentava libertar-se do lixo mal cheiroso, quando avistou a gaivota sua amiga que esgravatava na lixeira.
-Ora aqui estás tu de novo , mas minha amiga tenho que te confessar, afinal voar não foi nada uma boa ideia .Além de não ter visto nada ,não falei com ninguém e quando tentei ninguém me ligou ,a queda foi muito desagradável e agora aqui estou eu mergulhada nesta porcaria fedorenta, magoada e com alguns ramos partidos.
Felizmente vão me levar para um novo quintal onde espero tomar um bom banho e ser replantada com os pés bem assentes na terra ,e junto de companheiras simpáticas que alegrem os meus dias .
A gaivota sorriu e desejando -lhe dias melhores, voou para junto das outras companheiras.
No meio duma chinfrineira e esvoaçar de “adeuses” o bando partiu à procura de novas aventuras…
Giuseppa Giangrande
Paula Carvalho
Lídia Vieira
Helena Campos
Isabel Soares
«Os escritores vivem duas vezes.», Natalie Goldberg
Biografia de Shakespeare
Foram encontrados alguns escritos de William Shakespeare em siciliano. Graças a esses textos tem sido possível reconstruir a sua verdadeira biografia. O tal Shakespeare na realidade era Giovanni ou Michelangelo Florio, filho de uma condessa de Messina. Por causa das suas ideias heréticas foi obrigado a deixar a Sicília e depois chegou a Veneza, onde encontrou um mercador lhe emprestou dinheiro para uma viagem que o levaria, após diversas peripécias, a Inglaterra. Durante a sua estadia em Veneza, apaixonou-se pela bela Julieta, a filha do Doge, o homem mais poderoso da cidade, mas aquele amor foi contrariado e o pobre Michelangelo foi forçado a deixar a cidade. Outra vez uma fuga: o navio em que viajava foi atingido por uma tempestade que o fez rumar à Dinamarca onde uma sereia, que era uma princesa, lhe salvou a vida e o levou à corte do príncipe Hamlet. Aqui mais uma vez o Michelangelo foi protagonista de uma história de amor infeliz, junto a Ofélia, a noiva do príncipe. Fugiu novamente devido a isso, deixando Hamlet fora de si de raiva. Chegou finalmente a Inglaterra onde teve um enorme êxito, graças também às obras escritas em siciliano, como "Tantu trafficu pi nienti", ou seja "Much ado about nothing".
Giuseppa Giangrande
Pessoa ressuscitado
Ao acordar, Mister James Head descobriu que o seu quarto estava cheio de luar. Quando a lua começava a ser real, era tempo de partir.
Ele morria e nunca mais acabava de morrer. A curva da estrada era interminável.
Desta vez fora Mr. James Head e revisitara a cidade da sua infância pavorosamente perdida, onde outrora na barra do Tejo, de frente para o Atlântico, saudara o futuro.
E o futuro materializara-se ali na velocidade e na forma de pequenas máquinas a toque de dedo.
O seu antigo rosto tomava conta de tudo, rolhas, canecas, porta-chaves, cartões bancários, e era vendido aos turistas em miríades de objectos avulsos como símbolo da nação.
Na pele de Mr. James Head conseguira um lugar de professor na Faculdade de Letras onde tamborilava dedos impacientes em cátedras gastas e estrondeava gargalhadas perante a critica à sua obra.
As letras eram agora uma inundação de mulheres, toleironas deslumbradas que salivavam à mínima ressonância poética e borboleteavam à sua volta pedindo orientação para teses inúteis a que ele se recusava com displicência órfica.
Mas aquela Clara Queiróz era diferente, até no sobrenome lembrava a outra com quem há cem anos passeava tardes vagarosas no Jardim da Estrela.
E só a ela deu a chave de uma velha casa azul, ali ao Príncipe Real, onde a sua arca jazia com papeis nunca antes tocados e que ela devia abrir naquela hora crepuscular e absurda.
Ela chegou, ajoelhou-se junto à arca com luvas reverentes e ele, escondido na sala ao lado, colocou o bigode, os óculos, vestiu a gabardine, pôs o chapéu e assomou à porta.
- Ai que eu estou a alucinar! – gritou ela, levando as mãos à cabeça.
- Mas tu ainda não percebeste, Clara? Eu sou Fernando Pessoa.
Helena Campos
Qualquer Ana pode ser Karenina
Ana era a “hit girl” do momento, bonita, dona de dois olhos azeitonados, rosto oval, cabelos pretos liso, invariavelmente apanhados numa trança, elegante, talvez um pouco magra demais, sempre aprumada, ao invés de andar à moda, ela ditava-a, inteligente e culta, cursara Clássicas e Histórico-Filosóficas, estudara inglés e francês muito para além do imposto pelo ensino oficial, lera avidamente os livros que havia na casa do pais, na dos avós, na dos padrinhos. Beneficiando do ar dos tempos, que às mulheres já permitia que estudassem e lessem sem que por tal fossem crismadas de esquisitas ou mesmo perigosas, e do ambiente liberal vivido em casa, tinha até ao casamento sido dispensada dos lavores, da cozinha, da puericultura e afins.
O casamento foi rápido. O marido – quinze anos mais velho, advogado conceituado, viúvo dum casamento que terminara envolto em mistério [da mulher dizia-se que morrera no parto mas também que se suicidara ou ainda que fora morta às mãos dum amante, consentido pelo marido, já então impotente], mistério cultivado pelo próprio ao recusar activamente falar sobre o assunto - tinha o charme que se insiste que têm dos homens de quarenta anos, de que as mulheres nunca beneficiam, pois dizia eu, o marido encantou-a com versos sussurrados de Baudelaire, ausente de todas as atrás referidas Bibliotecas, daiquiris e slows lascivos ao som de Gainsbourg e Jane Birkin, transgressões absolutas num Porto conservador e praticante da moral da Família Inglesa e das Pupilas do Senhor Reitor dum Júlio Dinis falecido há quase um século.
Ninguém nunca soube o que se passara na lua de mel, gozada nas Américas – novidade absoluta num meio em que as meninas sonhavam com Veneza; Paris ou Roma, mas se contentavam com ir a Lisboa, quando muito à Madeira – mas para todos era visível que Ana regressara um tudo nada mais magra, com olhos um tudo nada maiores e mais brilhantes, com olheiras até então inexistentes. Tudo foi levada à conta da mudança de estado e da excitação dos States, de Nova Iorque, de Chicago, de S. Francisco, das muitas flores e do muito love, nunca ninguém sonhando, sequer, que talvez houvesse algumas outras coisas cujo nome ainda mal se sabia no Portugal de então.
O marido embrenhou-se de novo nos casos, não de tribunal, não era essa a praia dele, mas na advocacia de negócios, rendia mais e dependia apenas dele.
E em Ana continuava a acentuar-se a cada vez mais evidente magreza, o brilho dos olhos, as olheiras profundas. As leituras continuavam, as reuniões diletantes também, mas tudo se consumia num sem propósito que lhe esvaziava o fulgor. Ana já não era “hit”, estava magrérrima, ao estilo heroin chic só celebrado uma vintema de anos depois, os olhos perderam o brilho, o cabelo teve que ser cortado cada vez mais curto para encher o rosto, a roupa de bom corte não assentava nos ossos.
Um dia Ana conheceu um dos clientes do marido, um russo descendente de russos brancos, olhos azuis (tão azuis como os do Vronsky da sua homónima Karenina), e por ele se perdeu, mais do que já se perdera da Ana que um dia fora.
Paula Carvalho
A entrevista
- Bom dia. Venho para a entrevista de emprego. Fui convocada.
- Certo. E o seu nome é?
- Judite Silva
- Sim, está aqui o seu currículo. Porque concorreu a esta vaga?
- Fiquei desempregada o mês passado e ando à procura de uma nova oportunidade de trabalho.
- Porque ficou desempregada? A empresa onde estava faliu?
- Não. Mudou de gerência. A nova gerência decidiu reduzir o pessoal
- Estou a ver. Descreva-me as suas funções.
- Bem, atualizava bases de dados, fazia tabelas e gráficos, traduzia catálogos, trocava emails com clientes e fornecedores.
- Ou seja, tarefas administrativas. Mas você tem um curso superior, não tem? E já é sénior com essa idade, não é? Não lhe davam outras responsabilidades?
- A gestão era muito autocrática…Não havia categorias profissionais. Era obedecer.
- Então porque não mudou de empresa mais cedo? Com essa idade…
- Porque não havia anúncios durante a crise económica.
- Mas você tem de mexer-se. Tem de ser resiliente, empreendedora e proactiva
- Pois
- Pois. Nós não queremos gente velha e lerda aqui, está a perceber?
- Olhe, eu não gosto de psicólogos. Sempre a acharem que a culpa é dos pobres. A gente só quer um salário ao fim do mês para comer e pagar a renda da casa. Adeus – levantou-se e bateu com a porta.
Helena Campos
A Festa de Anos
-“ Conseissão, Ana Bela, Baneça, Felóra...” –teve que se concentrar para continuar a leitura, perdida que estava de riso – “Tumás, Carlus i Máuru.” “São só estes?”.
- “Sim, sim mãe.”
- “Bicos de patu, rissoes de peiche mas tamém pode ser de carne, corquetes, pipocas doces mas tamém pode ser salgadas, aquela coisa que é de xocolate e se come com colher mas não sei o nome e não é bolo, parece puré, bulinhos de bacalhau, alface de frutas...” – para quem andava no primeiro ano até não estava mal escrito de todo, se se lesse em voz alta percebia-se, mas ...– “Alface de frutas?!”
- Oh mãe, é aquela alface que se faz sem as folhas verdes, leva só maçã, pêra, uvas, ananás, mas não é daquela com sumo de borbulhas, com o daquela vez na casa da minha madrinha e fiquei cheia de sono e acordei mal disposta...”
- “Ah, já sei, salada de frutas “
-“É isso mesmo! Mas em casa da madrinha era uma salada com muito refresco com borbulhas, devia ser daquela água com pedras, não gostei nada.”
- “Pois, não gostaste tu nem eu quando soube que tinhas bebido cup” – pensou a mãe, prosseguindo depois em voz alta – “Não achas que falta alguma coisa?”
- “Acho que não mãe, está tudo o que gosto, ah, se calhar uns queques, aqueles pequeninos com manteiga e compota, adoro, adoooro!»
- “Scones?”
- “Isso!!!”
- “Mas então, o principal, o bolo de anos?”
- “Ah, isso... olha, se calhar fazemos como no ano em fiz cinco anos e morreu a tia Mariazinha e não tive festa: viras uma tigela de marmelada ao contrário e espetamos sete velas. Estava maravilhoso, mesmo com a cera toda derretida e apesar de ter apanhado uma dôr de barriga, ih!ih!ih! O que achas?”
- Sabes que és muito bonita?
- Obrigada, mas não preciso dos teus elogios. Já sei o que tu queres.
- Tens a certeza? O que é que achas de mim?
- Sei lá! Ou melhor, já sei que és uma mentirosa, mentes como um cesto roto!
- És injusta comigo.Eu quero só um pouco de companhia e falar um bocadinho.
- Vai-te embora!
- Acho que estás nervosa.
- Tu és a que me enerva.
- Mas porquê?
- Basta de histórias! Falei de mais, agora chega!
- Como queres, vou-me embora. Mas eu...
- Vai -te embora, não ouviste?
- Está bem, vou - me embora.
- Finalmente compreendeste?
A pobrezinha, a lombriga, vai-se embora. Mas volta logo, foi a recolher uma florzinha para a oferecer à maçã.
- Outra vez aqui?
- Esta é para ti.
- Oh... eu... eu... creia que tu querias comer-me...
- As aparências iludem às vezes...
- Não tenho palavras para te agradecer... fui injusta contigo...
- Não faz mal... amigas?
- Está bem.
Giuseppa Giangrande
Nós
- Ele tem qualquer coisa fisgada, já te disse…
- Cala-te.
- Tu sabes, tu sabes…
- Sei o quê?
- Que as perguntas dele têm um fim…
- Qual fim?
- O nosso! O nosso fim!
- Cala-te!
- Porque é que ele nos fechou aqui?
- É para nosso bem…
- Porque é que não nos deixa ver ninguém?
- Para o bem deles…
- Já te deu mesmo a volta a cabeça… Estás a ouvir?
- O quê?
- A ti! Já falas como ele.
- Eu falo como eu.
- Coitado. Achas mesmo que ele quer o teu bem?
- Não quer…?
- Nunca quis! Eu não tinha razão com os comprimidos?
- Tinhas…
- Não era verdade que te faziam dormir o dia inteiro?
- Faziam...
- E que desde que os começaste a esconder debaixo da língua não ficou tudo melhor?
- Não sei se é melhor… tenho pesadelos.
- Mas eu não estou sempre lá contigo?
- Estás.
- Não estive sempre contigo desde que éramos crianças?
- Estiveste.
- Não é melhor assim?
- Ele diz que não…
- Ele, ele, ele… qualquer dia…
- Qualquer dia o quê?
- Damos cabo dele.
- Não podemos…
- No dia da enfermaria… o bisturi de cortar as ampolas…
- O bisturi…
- Tiram-te o sangue e tu muito mansinho pedes para ficar a descansar…
- E depois..?
- Depois a enfermeira vai ao doutor e tu sacas o bisturi…
- Posso sacar…
- E na consulta… zás!
- E ficamos livres?
- Sim.
- E não há comprimidos?
- Não.
- E não diz mais que és só…
- Só...?
- Só... vozes…
- Cala-te!
C Borges
«Sê sempre um poeta, mesmo em prosa», Baudelaire
Baudelaire relembra-nos que prosa e poesia bebem provavelmente da mesma nascente. Pedimos aos nossos participantes que escrevessem em voz alta, que ouvissem o som da palavra a cair da fonte e deixassem cair na página sem os constrangimentos de sentido fechado da prosa.
O passeio
Percorri já vários caminhos, desde becos recônditos que desembocavam no mar através de uma rede de caves, túneis e cavernas, até vales repletos de construções humanas com vários níveis de complexidade. O meu percurso de eleição é o que me permite alcançar, passo a passo, pedra sobre pedra, uma terra só acessível por uma escada da altura de uma montanha. Este local ao qual chamo casa torna a vida em morte e a morte em vida. Contém as melhores partes de cada experiência, permite a minha boca saborear as labaredas solares, tocar em água tão fria que me gela os ossos e ver os movimentos aleatório das correntes de ar que me elevam até ao centro da espiral de corvos onde o dia se torna noite. Aqui, passado, presente e futuro convergem num diálogo contínuo entre o que é e o que pode ser, cristalizando qualquer sonho num templo de possibilidades.
Todos os dias são domingos
Escrever aos domingos, é o que resta a quem gosta de o fazer, mas tem outras profissões para alimentar a da escrita.
Por exemplo, andei a semana inteira com uns pensamentos sobre um conto. Vou por ali, introduzo uma personagem no terceiro parágrafo, mato-a no sexto, tenho de ter cuidado para ela não aparecer no 9.º, tenho de arranjar um início forte que valha a pena, tudo sem interesse.
Vai daí, ontem, deitei-me por volta das 11 da noite e não é que à meia noite e vinte minutos me surgiu uma ideia, daquelas que a gente tem de se levantar e apontá-la para não se esquecer. Lá está, e eu não acredito em coincidências, mas já era domingo.
António Duarte, homem pacato e dado a passeios junto ao mar, foi o primeiro a ver a chegada da hora nova. Segundo ele, uma gaivota trazia-a às costas e lançou-a aos poucos, operação que durou exatamente 60 minutos. A hora nova sorriu, pôs-se em posição e foi à sua vida, atrasando tudo 3600 segundo. Sobre a hora antiga, sabemos que foi descansar para outras paragens mais condignas com a sua condição noctívaga.
Este é um exemplo de um texto de domingo, que amanhã será apagado pois não tem qualidade. E é assim a vida de quem escrevinha só quando pode. Escreve 30 palavras, apaga 50. Reescreve mais 40 e apaga 35. Salvam-se 5. Dessas cinco, esperamos que se multipliquem por algumas mais. Mas é a alegria de ver essa meia dezena que nos faz aguardar ansiosamente pelo próximo domingo ou pela próxima oportunidade de retribuir qualquer coisa que tenha de se escrever com sílabas.
Tiago Pina
Escrever aos domingos
Escrever aos domingos... é um momento importante em que ideias, palavras, mensagens e muito mais se cruzam, como duas estradas, ou dois caminhos que levam à Itália e a Portugal. É uma maneira para deixar reaparecer lembranças bonitas, cores, como o azul do céu, o cor de rosa e o vermelho das flores, imagens de um tempo que parece longínquo, sabores, os abraços...
Escrever aos domingos é deixar ressoar vozes, sons, melodias... Escrever aos domingos é um momento de encontro, apesar das distâncias. Escrever aos domingos é deixar-se levar pela saudade e pela esperança de um novo encontro, apaixonar-se por algo que nunca se conheceu, que talvez fica sempre desconhecido, mas que faz permanecer o seu rasto no coração.
Domingo à tarde
Domingo à tarde era um lírio da paz. Uma cortina vermelha a ondular sobre uma seara verde que rodeava a mesa redonda e metálica onde pendia a caneta hesitante sobre o papel impávido.
Domingo à tarde era uma brecha de silêncio numa semana caótica onde a vida a escorraçava sempre, num eterno retorno ao mesmo lugar de Sísifo cansado.
O tambor da máquina a centrifugar a roupa. Uma osga que teimava em aparecer e que latia como um cão a esfolar o silêncio.
E de súbito, a torrente. As palavras a disputarem uma nesga de espaço no papel impávido, a acotovelarem-se como numa feira, as palavras riscadas porque arrependidas de nascer, desajustadas no conjunto, inconvenientes como uma nódoa na brancura aristocrática do papel.
As palavras que não vinham porque se recusavam a vir, porque descansavam, exaustas, de tanto serem solicitadas ao dicionário.
As metáforas que lhe fugiam, as metáforas gastas que lhe surgiam a despropósito.
E lá miava a osga num grito quase humano, a intrometer-se dentro das palavras, a usar as vírgulas como muletas e a varrer com a cauda bamboleante o que restava do sentido.
Helena Campos
«No que toca a escrever, acredito mais na tesoura do que na caneta», Truman Capote
Escrever é sempre cortar. Escolhar e decidir o que fica de fora. No caso dos microcontos ainda mais. Decidimos partir para o desafio, com tempo e caracteres limitados, sob o tema do corte. A experiência suscistou discussão e dúvidas. E, esperamos, algumas novas pistas sobre o que é uma «história» e esta experiência extrema da micronarrativa.
Pernas cortadas
Helena Campos
Corta!
Helena Campos
Via láctea de fel
Cortaste-me da tua vida com a frieza duma lâmina, lâmina que prepararas para usar quando não estivesse a ver. Sim, coragem nunca foi teu apanágio, cobarde era teu nome do meio. Regresso uma e outra vez àquele momento em que tudo ainda podia ser, penso no que deveria ter feito diferente para que tudo fosse possível, ainda que apenas agora, e amanhã tudo fosse igual ao que já é. Na minha mente, qual tela de cinema, passa um filme em câmara lenta, em modo de repetição, o filme do que poderia ter sido e não foi. Dizes que foi um acaso sem caso pensado, não acredito, não há acasos premeditados. Pois, mentira era o teu segundo nome, repetido no apelido.
Folheio o álbum que já foi nosso. Não te encontro. Nem quero. A tesoura de Toledo, comprada na lua de mel, cumpriu a sua função higiénica.
E, no entanto, continuo a ver o filme...
Paula Carvalho
Tesoura
Corte e costura
Dona Mariana decidiu abrir a porta do seu estabelecimento e colocar o trabalho sobre o balcão corrido. Após vários confinamentos, ansiava por confecionar roupas de raíz, algo a que renunciara para se dedicar aos arranjos de costura. Com o aparecimento de uma cliente, interrompeu a costura de um bordado num magnífico vestido de noiva. O vislumbre de tecidos cuidadosamente dobrados num saco de papel encheu-a de esperança.
-“Preciso que me suba um centímetro nestas baínhas” solicitou a cliente.
-“Só isso?” – inquiriu a modista com voz desmaiada.
-“Sim”- respondeu-lhe a senhora espantada, apontando o letreiro da montra: “Fazem-se arranjos rápidos de costura”.
A modista angustiada pela falha na atualização, quase cravou a tesoura num dedo a escassos milímetros da peça que exibia.
Lídia Vieira
Um conjunto de histórias de algumas das sessões de 2020/21 da arrepiante oficina Teias de Aranha. Prepare-se, virão mais...
«Escrever é a pintura das palavras.», Voltaire.
Nesta sessão escrevemos a partir de uma conhecida obra da artista portuguesa Helena Almeida (1934-2018). A imagem funcionou como ponto de partida que cada participante trabalhou livremente.
Fora / dentro / fora
Cor / negro / branco cinza
Luz / sombra / sombras
Opaco / fosco/ translúcido
Encobrir / descobrir
Fechar / abrir
Olhar / não olhar
Escutar / não escutar
Cheirar / não cheirar
Saborear / não saborear
Sentir / não sentir
Respirar / Suster
Inspirar / Expirar
Suspender / extender
Contrair / expandir
Pousar / fluir / flutuar
Sólido / líquido / gasoso
Neve / rio / nuvem
Princípio / caminho / fim
Querer / rejeitar
Escolher / duvidar
Amar / odiar
Princípio / fim
Nascer / viver / morrer
Ir / ficar
Rir / chorar
Verbo / sujeito
Directo / indirecto
Querer / rejeitar
Verão / inverno
Primavera / Outono
Vermelho / branco
Verde / amarelo
Verde / verde / verde
Vale / montanha / cume
Nascente / foz
Novo / velho
Se no princípio era o verbo, onde fica o sujeito?
Se os rios correm para o mar onde ficam os meus risos? E os choros, têm lugar? Ou habitam-me de madrugada, à hora que ninguém vê?
Vem vida, vamos juntas, a par, não me deixes, não me pregues mais partidas, não mudes as tuas perguntas porque já esgotei as respostas.
Sim, eu sei que queria seguir um caminho que nunca ninguém percorrera, calcá-lo e fazê-lo meu, sob o arco dum céu de veludo e sem outra bagagem que não os meus demónios.
Olho agora esse caminho, em que sombras se adensam e um nevoeiro espesso aperta, sem outra opção que não seja seguir um trilho, expulsar demónios e convocar os anjos que me deixaram cedo demais.
Vou, não vou? (É uma afirmação, não uma pergunta).Levo na bagagem as memórias, os risos, as cores, dos verões e dos serões que passaram, que nada pesam, ao contrário da certeza deste opressor inverno polar.
Paula Carvalho
ALEXANDRA ESCONDEU-SE ATRÁS DO AZUL
Alexandra escondeu-se atrás do azul enquanto observava o filho Daniel a pintar o silêncio gota a gota, no tempo em que uma arma biológica atingia o mundo.
- She got the blues – gozavam na empresa onde lhe caiam os tostões ao fim do mês. Colocada numa sala deserta sem fazer nada e nem assim lhe davam teletrabalho na pandemia. Era o assédio moral em pleno, até o sindicato a oprimia. A negra opressão da ditadura a que fora votada a sua carreira. Queres uns tostões ao fim do mês? Deita os canudos ao lixo e 4ª classe para a frente.
Meteu baixa por depressão por tempo indeterminado.
Arranjou uma caixa de aguarelas e começou a pintar sapatos em cima de cabeças, diplomas rasgados, vidas a partirem-se pelas escadas abaixo.
Lá fora, a pandemia rugia, 300 mortos por dia, 15 000 infectados por dia e ela pintava vírus dentudos a estrangularem inocentes ante o riso da bandeira chinesa.
Certa tarde, abandonou as pinturas e foi prostrar-se à janela da casa, agora transformada em gaiola anti-virus. Quando regressou à sala, uma flor azul tinha nascido na tela. O filho autista, com os dedos cobertos de tinta azul, olhava fixamente a parede com os seus olhos de céu nocturno.
Helena Campos
O MAR, UMA MANCHA AZUL
Estou à frente do mar, que me aparece como uma imensa mancha azul; está vento, que agita as ondas e as faz subir e descer. Fico submersa na onda das recordações, de um tempo agora distante.
Quem me dera poder voltar a felicidade daqueles dias, mas tenho de me resignar, - o que se foi embora não vai voltar, perdeu-se, não haja ilusões.
Olho para o céu, outra imensa mancha azul; vejo um bando de gaivotas que voam livres, felizes! Também queria ser uma delas, voar, ser feliz.
Ao olhar novamente para o mar encrespado pelas ondas, tenho consciência de que, no fim de contas, talvez a vida seja como aquelas ondas que andam numa roda-viva, que se aproximam da terra, para depois se afastarem de novo. Enfim, uma série de altos e baixos.
Ouço o canto das gaivotas que esta vez me faz acordar de uma espécie de torpor em que tinha caído; aquele canto é um convite a olhar para frente, para o futuro sem ficar apanhada nos laços do passado. Então, vejo na voz das gaivotas uma mensagem. Uma mensagem que me infunde a esperança de algo novo e melhor. De coração leve, viro as costas ao mar, aquela imensa mancha azul, e volto para casa, decidida a recomeçar do zero, olhando para o céu, outra mancha azul.
Giuseppa Giangrande
Não quero continuar escondida atrás deste azul imenso de dúvidas que ensombraram toda a minha vida.
Quem fui e quem sou?
Ontem triste e derrotada, hoje alegre e conquistadora, como estarei amanhã?
Um longo caminho de hesitações e receios que me aprisionam atrás deste mar de insegurança.
Quero libertar-me, emergir da profundidade, mostrar um meu outro Eu .
Dar a conhecer as minhas conquistas, experiências vividas de relação humana, de dor e sofrimento e até de morte, mas também tantos momentos de felicidade e alegria que exprimem o sentimento de missão cumprida .
Esta na hora de pegar no pincel e pintar uma nova tela.
Isabel Soares
NOVA TEMPORADA 2021/22
«A escrita, se olhares bem para ela, é um delírio organizado.», António Lobo Antunes
Aqui, na Naftalina-Sabonária, escrevemos textos durante a sessão inspirados num tema, texto ou estilo apresentados na sessão. Também continuamos com o projecto FOLHETIM, a acompanhar também neste blog, em publicação separada.
Nesta sessão inspirámo-nos no conceito de «delírio organizado» que nos trouxe a citação de A. Lobo Antunes.
A proposta foi começar com uma palavra «escrita». A partir daí, fazer associações livres, até a caneta ou teclado, tiver vontade de começar uma pequena história.
Escrita
Essência
Grita
Cria
Espanta
A mente de Demétrio estava imóvel. Era natural, pois o impossível acabara de ocorrer. Mas como? Talvez até fosse isso que o espantara, pois sabia que, de facto, o acontecimento tinha uma causa, agora se esta se encontrava enquadrada em qualquer padrão do conhecimento humano a resposta certamente era não. No entanto, desconhecia se o seu grito teria sido de horror ou de alegria ao se aperceber que o que apareceu à sua frente após ter escrito “Fim ou início?” na última página desafiava o meio envolvente.
Podem as palavras ter tanta força ao ponto de tornarem o abstrato em algo concreto, ancorado a esta realidade, mas que continua ligado a outro plano de existência? O que será mais verdadeiro, ele, sentado nesta cadeira com os pés presos ao chão de madeira e as suas mãos agarradas tanto à pena como ao papel, ou a sua criação, uma ideia que não se encontra presente neste mundo? Não sabe. Nem sabe se esta ideia manifestada faz parte dele, se a criou de raiz para complementar o que ele sabia que tinha em falta, se lhe foi apresentada por um ser superior à qual ela pertence, ou até se ele estaria a pensar nesta situação ao contrário: será que ele era a criação e não o criador?
O que ficou a seguir a saber era que tinha três opções: podia negar a existência daquela entidade e, portanto, desconstruí-la de maneira a preservar a sua própria identidade e meio ambiente, pensar que de facto já era tempo de haver uma mudança e de recomeçar do zero ao ser o ele atual obliterado, ou de optar por o antigo e o novo coexistirem, ajudando-se um ao outro com as suas melhores qualidades.
Escolheu a terceira opção. Lentamente, ergueu-se, ouviu os sussurros de aprovação e de incentivo. Estendeu a sua mão. A figura converteu-se num líquido negro e verde que voou pelo quarto hospitalar, tocou nos seus dedos, percorreu os seus braços e penetrou os seus olhos, desaparecendo dentro de si. Estava contente. Abriu a janela enquanto as fendas surgiam na sua cara e percorriam o seu corpo de cima a baixo, ergueu os braços e desintegrou-se. As partículas de ambos foram de seguida levadas por uma brisa para serem reconstituídos noutro lugar, noutra época, como algo diferente, algo mais.
José Maria Covas
Escrita
escriva
criva
balas
rimas
força
O Quinquilhas trabalhava com rimas; gostava de se ver a si próprio como um carpinteiro, mas em vez de madeira, o seu material eram palavras. Pegava nas sílabas, baralhava-as, distribuía-as, engalanava-as, perfumava-as e colocava-as num caderninho onde estas ganhavam forma. Quando estavam prontas, dava-as a experimentar a alguns amigos.
- Estão muito doces!
- Falta-lhes um pouco de sal!
- Estão no ponto!
- Experimenta grelhar mais um bocadinho!
Desde que aprendera a ler, na Escola Básica de Marvila, as palavras sempre lhe despertaram um interesse que não tinha para os números. As lengalengas deixavam-no feliz por as poder continuar.
“Atirei o pau ao gato, to, to, mas o gato, to, to não morreu, eu, eu, Dona Chica, ca, ca, assustou-se, se, se com o berro, com o berro que o gato deu. MIAU! Encontrei-o na praia do Vau, au, au, a chorar, ar, ar, Dona Pipa, pa, pa, teve pena, na, na e levou-o e levou-o para casa, sa,sa!”
No bairro onde vivia, sítio com fama de ter má fama, a força, algumas vezes, era conquistada ao murro, outras bastava acenar com uma arma. Para Quinquilhas, as rimas, os poemas que fazia, eram as suas balas, eram a maneira que tinha de comunicar.
Por isso, quando tinha 16 anos, apresentou-se a um concurso com uma história sobre dois senhores que no dia 7 de setembro de 2002, receberam uma carta do IPO a dizer que tinham cancro. Os dois senhores moravam em Chelas, mas não se conheciam. Com os tratamentos, descobriram que viviam perto um do outro.
Começava aqui uma amizade que só a doença travou.
A história convenceu o júri que lhe atribuiu uma menção honrosa.
Para Quinquilhas, era importante desmistificar a má reputação que o seu bairro tinha. Por isso, escrevia na esperança que um dia, as notícias noticiassem:
- Hoje, em Chelas, apareceram palavras, rimas, restos de frases nas casas das pessoas!
Um dia, tinha 19 anos, ao sair de casa, viu um arco-íris a aparecer do nada a iluminar Chelas. Achou aquilo tão bonito que sacou do seu caderno e ia começar a escrever quando uma bala perdida lhe entrou na cabeça.
Caiu logo ali, juntamente com o caderno. A última entrada dizia:
“-Uma palavra pode ser doce, mas não adocicada.
Uma palavra pode estar congelada, mas não é gelo.
Uma palavra pode ter força, mas não é ela que mata.”
Tiago Pina
TETO
Há três meses que a Guida procurava um teto para comprar e o tempo urgia. Correra os bairros de que mais gostava, mas tudo lhe estava vedado por excesso de zeros nos preços apontados. E nem as sugestões de descontos de 20% ou de supressão do pagamento da escritura a animavam. Os vendedores solícitos insistiam em enaltecer as vantagens do jardim de um rés-do-chão sombrio ou a luminosidade de um sótão liliputiano proibitivo para o seu metro e oitenta. Só os imóveis por construir correspondiam a um empréstimo próximo do teto de esforço aceitável para o programa de validação imposto pela banca. Tudo o resto era risível para os funcionários que a atendiam, tentativa após tentativa.
A Guida ía preenchendo os seus dados e impressões num caderninho de escola onde antes fizera as redações. Só que não conseguia escrevinhar nada com um possível final feliz.
Todos os domingos, os pais convidavam-na a almoçar para ‘porem a escrita em dia’. Expor oralmente e expôr-se ao sorriso benigno da mãe e aos comentários mordazes do pai organizava-lhe o pensamento cada vez menos delirante, a cada dia mais focado.
O discurso do senhorio, outrora afável, depois irrompendo com o argumento da necessidade para uso próprio, disfarçava cada vez menos a adesão ao arrendamento lucrativo. Uma tentação que mudaria a vida de muitas pessoas para sempre.
Calcorreados tantos bairros, muito cabisbaixa de tanta frustração e raiva, começou a buscar os quadrados dos escritos, coisa tão rara. Num prédio remodelado, o seu olhar encostou-se a três novos pisos de cobertura contendo os clássicos quadradinhos. Decidiu ir tentar a sua sorte, procurando num novo aluguer e na Deco interlocutores menos espinhosos do que as instituições bancárias. Pigarreou e procurou andar sem tropeços, ritmando palmadinhas no seu caderno de bolso.
Lídia Vieira
liberdade
pensamentos
Que se tornam realidade numa folha de papel solta.
Palavras que parecem sem sentido, mas que escondem e querem dizer algo, falar ao coração. Agora compete a ti, leitor, interpretar o que elas, as palavras, querem comunicar.
Elas desejam ultrapassar os limites, que representam as imposições dadas por alguém que não tem direito a reprimir o que vem do coração. Muitas vezes elas, as palavras, são consideradas perigosas e podem fazer mal e causar sofrimento. É isso o que estou a viver, uma vida cheia de sofrimento… mas não quero mover a compaixão, desejo só que as palavras sejam um incitamento a viver livremente…
A escrita agora interrompe-se no meio da frase, que não chega ao fim…
Respiro fundo: quem pode ter escrito isso, nesta folha de papel solta, que encontrei debaixo do chão de mosaico na casa que acabo de comprar e que está a ser remodelada? Foi um homem, uma mulher a fixar essas palavras na folha de papel amarelada que agora tenho na minha mão e que me fazem sentir calafrios? O que aconteceu a essa pessoa e por que se interrompeu a frase de repente?
Ao ler essas poucas palavras, sinto-me na obrigação de fazer algo, de decifrar o enigma que está atrás deste breve texto. A única coisa que virá em minha ajuda é a data em cima da folha ou melhor o ano, posso ler apenas 1950…
Giuseppa Giangrande
Escrita
livro
biblioteca
traça
mafra
viagem
camionete
PARAGEM
A paragem da camionete tinha o abrigo estragado. A chapa do tecto estava rasgada numa estrela assimétrica que pouco fazia pela violência do sol. O banco estava solto de um dos lados e era a perna dele que fazia da que faltava. Quase cansava mais estar sentado do que em pé. Uma carrinha de caixa aberta com duas gaiolas de galinhas brancas tremeu pela estrada e deixou mais uma camada de pó nas suas botas. Agora já não fazia diferença, a caminhada tinha-as posto daquela cor que faz sede e comichão na garganta só de olhar. A camionete passava às 3, se não se atrasasse. Ainda tinha 15 minutos para contar os carros que passavam. Tirou da mochila o telemóvel. Sem rede, o costume. Desligou e voltou a ligar. Nada. Levantou-se e leu o horário em letras pequenas e um cartaz que anunciava «Nando e as Chiques, 15 de Agosto nas Festas da Senhora do Calvário». Só que era do ano passado. Admirou a cabeleira lustrosa e os ray-ban do Nando, as Chiques eram duas raparigas em collants e plumagens cor-de-rosa que sorriam muito. Bons dentes, pensou. De certeza que já tinha passado meia-hora. Seca, seca a toda a sua volta. Ouviu um motor ao longe e pegou na mochila. Olhou para a curva e viu surgir um carro azul metalizado. Pousou a mochila outra vez. O carro era bem bonito, de matrícula alemã – imigrantes, pensou, embora o modelo não batesse certo.
Pegou no telemóvel e caminhou para a frente e para trás na estrada de poeira e pedras. Depois, nem rede, nem bateria. Passaram duas horas? Havia sempre a camionete das 6. Já passava das 6? Voltou para o abrigo. O rasgão do tecto deixava ver uma nuvem cinzenta. Quase de repente começou a chover. Encolheu-se a um canto. Se ficasse bem encostado podia quase escapar à chuva. As botas ficaram outra vez pretas e a terra tornou-se lama. Um raio iluminou o céu e um trovão fê-lo vacilar. A tempestade era um canhão em cima dele. Um novo raio desceu do céu direito aos pinheiros do outro lado da estrada. Com horror viu a árvore engolir o feixe de luz e depois ficar completamente carbonizada. A trovoada durou muito tempo e ele ficou encharcado e infeliz. Sentou-se no banco a arfar, ouvindo os últimos pingos da chuva e o crepitar que vinha das árvores. Estava demasiado escuro para sair dali. O cansaço fazia-o ver luzes e ruídos que não existiam. O restolhar das folhas confundia-se com passos e sons arquejantes. O seu eco? Voltou o silêncio. Agora parecia que pontinhos de luz vinham na sua direcção. Dois a dois, calmamente, mas sem parar. Cada vez mais próximos. Tinham descido os lobos.
C. Borges