LABORATÓRIO DE TEXTOS
Esta é uma fresta por onde se pode espreitar o nosso laboratório.
Gostamos de experimentar textos, inventar espaços e condições especiais e neles deixarmo-nos espantar pelo que acontece.
Aqui, recolhemos algumas das linhas que vão sendo criadas em diferentes oficinas. Algumas delas, dirigidas a antigos alunos, como a Naftalina, são iniciativas regulares; outras, abertas a quem por cá passa, são encontros e iniciativas extra-aulas. Placas de Petri.
Os textos, produzidos no tempo e condições das sessões, têm como único — e suficiente — critério de publicação a vontade do seu autor de vê-los aqui reproduzidos. Experimente ler, mas proteja-se: o prazer da experiência pode ser contagiante.
Esta sessão inaugurou o projeto Folhetim e escrevemos os primeiros capítulos de 4 histórias. Na próxima sessão, e por sorteio, os participantes continuam ou começam novas histórias.
MINIATURAS I
Para maior cidade do universo, era demasiado pequena. Já era a terceira vez esta semana que se cruzava com as mesmas pessoas a caminho do emprego. É verdade que era sempre em sítios diferentes do percurso, mas eram sempre as mesmas pessoas e sempre na mesma sequência. O mais estranho de tudo é que as conhecia a todas, de vista, mas de cidades diferentes onde tinha vivido em momentos dispersos da sua vida. Tinha mudado para aqui havia 2 anos e não estava arrependido de ter aceitado a oferta de emprego que lhe tinha aparecido, um pouco do nada, mas no momento certo. Foi num impulso que aceitou e só pensou na decisão que tinha tomado no dia seguinte, enquanto atravessava os ares a caminho da que viria a ser, ainda não o sabia, a última cidade que iria conhecer. Para trás deixava uma vida sem grande história, ou com história nenhuma, já que tudo o que tinha de importante lhe coube numa pequena mala que jazia agora no porão do avião onde seguia. Nem telefonou ao patrão a dizer que não voltava; talvez o fizesse depois de chegar.
A manhã estava luminosa, a temperatura tinha subido e atravessava a cidade a passo não muito rápido, mas decidido. Foi quando chegou ao cruzamento e parou à espera da mudança do semáforo, que o dia ia irremediavelmente mudar. Olhou em frente e lá estava.
Francisco Feio
CONTOS PROIBIDOS I
A carta tinha ido para a morada errada. E ainda bem. Passo a explicar. Há uns anos emprestaram-me um livro muito raro, sobre um escândalo político e financeiro passado em Macau, de que só houve primeira edição, tendo o autor entretanto asilado em parte incerta. Li-o e reli-o, depois guardei-o na estante, sempre com a ideia de o devolver. O tempo foi passando e um dia recebi uma sms do proprietário do livro, reclamando-o. Passaram mais uns dias, talvez semanas, e nova sms. Finalmente decidi-me - embrulhei o livro em papel pardo (tenho resmas em casa), atei o embrulho com um cordel daqueles antigos, que já só se encontra nas drogarias dos bairros onde ainda há drogarias, um cordel de duas cores – azul e cru, verde e cru, vermelho e cru (este era preto e cru) – e escrevi “LIVRO” no embrulho, assim me livrando de escrever uma qualquer nota de pedido de desculpas pois a tarifa de expedição de livros não permite, sequer, que nele vá agarrado um cabelo quanto mais um cartão de visita. Afincadamente, escrevi o nome e a morada do destinatário. Quer dizer, escrevi o nome do destinatário e a rua onde ele residia. Como a morada só se completa com o código postal, foi aqui que a história começou (ou continuou, pois começar tinha começado quando me emprestaram o livro), ao inserir o meu código postal e não o do destinatário.
Paula Carvalho
A LÍNGUA DOS OLHOS I
Olhou para o espelho: os olhos dela falavam.
Falavam em muitas coisas, em inumeráveis sentimentos e sensações, às vezes tempestuosas.
Os olhos, porém, queriam que ela também falasse, que desse liberdade a tudo aquilo que ela sentia e tinha no seu coração.
Então ela pediu aos seus olhos que falassem, que continuassem a falar, porque ela não conseguia expressar claramente os seus sentimentos, aquilo que estava fechado no seu coração e que não podia dizer através da sua voz.
E foi naquele momento que os seus olhos falaram novamente, com lágrimas.
Eram lágrimas de felicidade ou de tristeza? Era saudade? De quem? De quê?
Giuseppa Giangrande
«THAT'S ALL FOLKS” I
«That’s all folks!», repetia entredentes, enquanto esperava atrás da porta. Não lhe arrancariam nem mais uma palavra. Não é que tivesse alergia às palavras, ou suspeitasse da sua inutilidade. Aos seus olhos era mais simples: tinha uma vida inteira de palavras a falar por si, uma vida inteira de ações a substanciar essas palavras. Eram muitas palavras, ditas, repetidas, demasiadas vezes, demasiado o mesmo. Agora acumulava-se-lhe nos ossos o cansaço, uma certeza cimentada pelo cansaço, pela repetição das mesmas perguntas, pela procura incessante das respostas certas que parassem as perguntas. Ou de respostas que mudassem as perguntas. Se alguém quisesse saber porquê, só tinha de percorrer para trás o caminho que tinha trazido os seus saltos altos até aqui, a esta porta.
«That’s all folks!», a mão suada e trémula rodou a maçaneta e saiu.
Patrícia Louro
Kandinski, Pintar a música
Sentidos cruzados
Franz Liszt, Duke Ellington ou Pharrel Williams são apenas alguns dos músicos que ao ouvir notas ou instrumentos vêem cores. Liszt diria à orquestra algo com «menos rosa, senhores, este trecho é violeta». A sinestesia, ou o despertar de uma experiência sensorial a partir do estímulo de outro sentido, é um fenómeno conhecido e funciona a vários níveis. O escritor Vladimir Nabokov, por exemplo, dizia que a sequência de letras «NZSPYGV» era o arco-íris, o poeta francês Arthur Rimbaud escreveu o célebre Vogais, mostrando-nos as cores por detrás de cada letra.
Ao abordar os Sentidos, um dos temas-chave da escrita, mergulhámos na sinestesia e fomos à procura das cores, sabores, temperatura e imagens do excepcional e hipnótico, Music for 18 Musicians, de Steve Reich.
Depois de alguns exercícios, os participantes escreveram um texto livre.
Agora que é noite, o comboio continua a atravessar a imensidão que nos separa ainda do mar. A paisagem desapareceu da janela, as luzes vão-se desvanecendo e ganha presença o som do rodado a passar nas travessas com uma cadência de metrónomo a marcar o tempo para uma peça de música que cada um tocará como bem entender. A pauta que nos foi distribuída no início da vagem está em branco e cada um vai construindo a sua música à medida das suas possibilidades. O comboio é como uma orquestra em movimento, em que cada músico toca a sai parte em silêncio, sem saber o que os outros tocam. E assim se vai construindo uma grande sinfonia interior que todos tocam e ninguém irá ouvir. Esse silêncio é o único registo que fica da viagem e o único que perdurará no tempo.
Francisco Feio
Vejo rostos apressados em cima de corpos que se movem quietos, direitos, dentro de máquinas com rodas que andam sozinhas e produzem ruidos estranhos. Há filas intermináveis dessas máquinas de lata e quatro rodas, às vezes só duas. Buzinas estridentes assustam-me porque não sei de onde vêm. De cada lado dessas ruas há outras máquinas de lata, paradas, e depois delas outras ruas contíguas a casas altas com muitas janelas, muito alinhadas e ordenadas. Estas ruas só têm pessoas, que caminham rápido, sacos nas mãos, algumas falando e gesticulando mas estão sozinhas, não se percebe para quem e com quem falam.
Nada sei, nada conheço ou reconheço. Estarei num filme de ficção científica ou num futuro distópico mas no mundo donde venho ainda não se inventou nem a ficção científica nem a distopia.
Paula Carvalho
Uma luz clara, brilhante, tão brilhante que deixa ver tudo em branco, mas que depois se faz azul.
Uma luz que deixa sentir tranquilidade, calma e que dá felicidade.
Instantâneos de uma fotografia que passam e que recordam um tempo maravilhoso, em que se saboreou a felicidade e a liberdade.
Desejo de que esse tempo volte.
Giuseppa Giangrande
Há uma urgência no ar. Há sempre uma urgência no ar, pensava ela. Sempre, sempre, sempre, alguma outra coisa para fazer, para pensar, para experimentar. “há dois tipos de pessoas, as que estão sempre à procura de algo novo, e as que estão satisfeitas.” Deixou o cérebro ir. “há dois tipos de pessoas, as que vão explorar o mundo, e as que ficam a cultivar a terra.” O cérebro já estava longe. “há dois tipos de pessoas, as que se enfrentam a cada batalha, e as que sorteiam os obstáculos, qual barco a navegar entre rápidos”.
Abriu os olhos, na carruagem cheia do metro, cheia de perfumes, algum suor, muito cansaço acumulado de noites mal dormidas. Abriu os olhos e não encontrou nenhuns outros olhos para se ver refletida. Fechou-os novamente.
“Há dois tipos de pessoas, as que andam de transportes públicos, e as que não.”
“Há dois tipos de pessoas….”, o cérebro parou por um momento, e os olhos abriram-se contra a vontade dela. E ali estavam, frescos, esses olhos onde agora se via refletida, não sabendo se ela própria era das pessoas que estavam satisfeitas ou sempre à procura de algo novo.
Quis fechar os olhos, esquecer a urgência, deixar o cérebro ir.
Tinha ela ido explorar o mundo? Ou sorteado obstáculos? Ou…?
Os olhos aproximaram-se.
“Há dois tipos de pessoas, e depois o resto de todos nós”, murmurou-lhe ao ouvido a detentora dos outros olhos.
Patrícia Louro
Falámos do que trouxemos para a balança, este ano tão desequilibrada. Flámos das angústias e da esperança. Estes foram os nossos balanços do ano.
O futuro chegou.
Disso a convicta certeza.
A Morte é certa, na Vida.
O Futuro também o é..
Seja Ele, curto ou comprido, nunca por cumprir.
Então aprendemos, Humanidade a entender o Presente no Futuro…
Este, mais inabalável e consistente.
Exigente, que não mente, criar desta prenda em Natal,
Um clarão, sempre além em felicidades, nos futuros recorrentes e tão próprios
Porém, um verbo… * O* Verbo… amar.
Há que teimar,
Há mais do que nunca, acreditar.
O desconcerto do mundo ou as angústias de uma espécie que inventa gaiolas para os
outros e desta vez foi engaiolada.
Se há coisa que sei da espécie humana, é que a memória tem asas de pássaro. Os
humanos são animais que morrem por camadas, o passado vai-se esfumando e amanhã
irão para a praia, afogar o azul da neura no azul das águas.
Amanhã, esta pandemia fará bocejar os estudantes nas aulas de História e as datas, os
países, o número de mortos figurarão em cábulas escondidas nas mangas dos casacos.
Mal de quem ficou sem pão, sem trabalho, sem casa, sem pais, sem ninguém.
Mal de quem viu a vida transformada numa concatenação de desgraças como uma
tragédia grega, sendo o vírus, qual caixa de pandora, a origem de todos os males
vindouros.
Todos os outros continuarão como se nada fosse.
E no cinema, alguém avisará o protagonista do Regresso ao Futuro para não conduzir o
carro da máquina do tempo para o famigerado ano de 2020.
E o público rirá entre pipocas.
Helena Campos
Nesta sessão, recordámos Enid Blyton (GB, 1897 – 1968) que ficou conhecida pelas suas colecções de livros de aventuras para crianças e adolescentes.
O seu primeiro livro foi publicado em 1922 e o último em 1965. Terá escrito perto de 800 livros – nos anos 50, publica em média 50 livros por ano, o que deu origem a rumores de que recorreria a escritores-fantasma, o que sempre negou. Embora hoje criticada pelo seu estilo repetitivo, moralista e pela visão preconceituosa do mundo, os seus livros acompanharam milhões de jovens.
As colecções que criou incluem: Os Cinco, Os Sete, As Gémeas no Colégio de Santa Clara, O Colégio das Quatro Torres, Colecção Mistério, Noddy.
Depois de falarmos um pouco da autora e dos principais traços das histórias de aventuras, criámos as nossas.
Sozinha em casa
A manhã ia alta quando Milai acordou, num quarto que o frio tornara desconhecido e cujas vidraças despidas de estores permitiam a invasão do cinzento deprimente do exterior.
Por mais que se esforçasse, Milai não se reconhecia naquele ambiente, habituada que estava a ser acordada pela mãe, ao calor do aquecimento central, dos edredons fofos, dos reposteiros de cores cálidas…
Saltou da cama e não encontrou os chinelos, os pés nus encolhiam-se na madeira fria e seca, tampouco encontrou o roupão… A porta estava aberta e dava para um corredor desconhecido, cujas paredes não ostentavam nem quadros nem fotografias familiares. Avançou a medo – que casa era aquela, que chão nu e frio era aquele, onde estava a mãe que não a despertara?
Ao fundo do corredor, uma porta escancarada emoldurava uma sala revolvida – livros pelo chão, gavetas esventradas, almofadas revolvidas e cadeiras de pernas para o ar. A confusão, evidente, contaminou-lhe o pensamento, que se recusava a perceber o que via.
Um gemido em forma de miado e uma bola de pelo que lhe chocou nas pernas sinalizaram a existência de outra vida – não necessariamente a que mais gostaria de ter encontrado. O susto foi potente, deixando-a pregada no chão, o coração a bombar a toda a força, e o cérebro a gritar – e se tem pulgas, e se tem pulgas, e se tem pulgas…
Fechou os olhos. Queria a mãe, queria a sua casa, queria a sua vida de volta.
Acordou na cama fofa de edredons de cores garridas, o gato deitado aos pés da cama, alguém lhe media a febre enquanto outra pessoa lhe massaja a fronte com um pano quente embebido no que, pelo cheiro, seria álcool. Sentia-se gelada e tremia e batia os dentes como castanholas.
- Milaizinha querida – era a voz do pai –, nossa heroína! O teu sonambulismo hoje salvou-nos de sermos assaltados. Os ladrões, quando te viram à porta do escritório, pensaram que eras uma alma penada e depois o gato atirou-se a eles e deixou-lhes as caras numa chaga, um deles é alérgico a gatos e teve uma crise de asma, foi levado no 112, não se sabe se escapa.
Paula Carvalho
I - Um conto à nossa maneira
Exercício inspirado no texto de Raymond Queneau, Un conte à votre façon.
Em grupo, os participantes escreveram duas histórias diferentes. Depois, combinaram-se os contos com as frases que indicam percursos diferentes da história.
A escrita colaborativa decorre, assim, a três níveis: escrita em grupo, recombinação das histórias dos grupos, escolha do leitor da história que quer ler.
1
Era uma vez um Zé Ninguém que pedia nas ruas de Lisboa.
Se não se interessa por zé ninguéns, vá para 2
Se está satisfeito, vá para 3
2
Era uma vez um cavalo de corridas, que vivia numa coudelaria luxuosa e todos os dias de manhã ia treinar.
Se não se se interessa por equinos vá para 1
Se está satisfeito, vá para 4
3
Uma noite teve um sonho psicadélico em que vivia num palácio rodeado de ouro e prata.
Se não quer que ele sonhe, vá para 4
Se quer saber o que significa o sonho, vá para 5
4
Uma noite não conseguiu adormecer, então decidiu passar a noite acordado a polir metais e a relinchar contra o seu destino.
Se quer saber o que aconteceu a seguir vá para 6
Se quer que quer ele durma um bocadinho, vá para 5
5
Quando acordou, veio-lhe à cabeça o ditado popular «Querer é poder!» e percebeu imediatamente o significado do sonho.
Se gosta deste ditado, vá para 7
Se não gosta de ditados populares, vá para 6
6
Quando amanheceu, consultou o seu horóscopo: finalmente tinha todos os planetas alinhados para triunfar, o que nunca tinha sucedido.
Se não acredita em horóscopos vá para 5
Se quer saber o que aconteceu depois, vá para 7
7
Essa revelação deu-lhe coragem para declarar o seu amor a uma senhora benfeitora que o ajudava frequentemente.
Se quer seguir a história de amor, vá para 9
Se está a achar isto enjoativo, vá para 8
8
Irritado, decidiu que era altura de se vingar da Maria Antonieta que lhe tinha um coice e uma dentada numa orelha e que agora era famosa por ter começado a falar inglês sem ninguém a ter ensinado.
Se quer saber o que se passou depois, vá para 10
Se preferia uma história sem ódios antigos, vá para 7
9
Mas o objecto do seu amor rejeitou-o porque o ajudava em nome de Cristo.
Se quer dar mais uma hipótese ao amor, vá para 11
Se quer saber o que aconteceu a seguir, vá para 8
10
Quando se encontrou cara a cara com a sua inimiga, percebeu que era estrábica e que nem sequer o tinha visto no primeiro dia.
Se quer saber o que se passou a seguir, vá para 11
Se não quer saber mais nada, vá para 12
11
Completamente baralhado, foi para uma taberna e pôs-se a beber. Até que, de repente, encontrou quem viria a ser o amor da sua vida: uma fadista que cantava tristemente ao som das guitarras.
Se quer saber o que isto significa, vá para 12
Se nada na vida tem significado, vá para 13.
12
Afinal, nada importava, pensou para si próprio. E disse: a vida são dois dias e o carnaval são três.
Respirou fundo e decidiu mudar de carreira e aprender a falar russo e jogar xadrez.
FIM
13
Reflectindo, disse para si próprio: vida é um acaso absurdo, é uma lotaria imprevisível.
Respirou fundo e decidiu escrever versos para um fado que veio a tornar-se um grande êxito português.
FIM
Participantes:
Conceição Brito
Giuseppa Giangrande
Helena Campos
Lídia Lopes
Patrícia Louro
II - Histórias cruzadas
Com uma estrutura fixa, as histórias multiplicam-se em ínúmeras e inesperadas versões. Cada participante escreveu uma história. Depois combinámos num quadro onde cada quadrado pode combinar com qualquer outro. Alguns resultados são mais surrealistas do que outros - mas levantam boas ideias para próximos textos!
Participantes:
Conceição Brito
Giuseppa Giangrande
Helena Campos
Lídia Lopes
Patrícia Louro
III - Textos de 10 minutos escritos com palavras obrigatórias sugeridas pelos participantes
Rosa
O dia começou cor-de-rosa. Bom. Não era bem cor-de-rosa, mas o ser que nos ocupa esta história não é um designer gráfico a trabalhar com quadricromia, portanto digamos que o dia começou cor-de-rosa.
Era um dia como outro qualquer. Era um dia como só esse dia podia ser dia. Era um grande dia. Ou pelo menos era um grande dia para o pequeno ser que nos ocupa esta história: uma lagarta lagartinha, feliz como uma perdiz, ou o seu equivalente em mundo lagartil: viver num ramo de carvalho, alto, muito alto (lembre-se, caro leitor, do tamanho de uma lagarta, se ainda conseguir evocar os seus dias de infância. Um carvalho é, para uma lagarta, e como se dizia nos meus idos tempos, bué da alto).
Mas voltemos à história que nos ocupa. A lagarta acordou com um céu cor-de-rosa. Espreguiçou-se, comeu meia folha de carvalho, e fletiu os músculos de lagarta (bué da pequenos, mas súper poderosos), e fez uma corrida até um ramo mais baixo. Correu, correu, correu, chegou. Bebeu a água das folhas do ramo mais baixo do carvalho, para isso tinha descido.
E porque esta é uma história sobre pequenos tamanhos, nesse ramo baixo do carvalho, a feliz como uma perdiz lagarta encontrou-se com o seu destino, uma criancinha de idade indeterminada para a lagarta (que não percebia muito de humanos, mas nós podemos dizer que teria uns 6 ou 7 anos), e brandia como uma espada um abridor de cartas em forma de punhal, roubado à socapa, do home office do pai (e por uma vez, não há nenhuma culpa da mãe da história que nos ocupa).
A lagarta curiosa desceu um pouco mais. A criança distraída subiu o braço. E desse encontro infeliz, metade da lagarta caiu no chão, e a outra metade ficou agarrada ao ramo.
Quanto à criança, foi chorar para o colo da mãe.
Patrícia Louro
Tema: Microcontos
1.º Um microconto a partir da história A Princesa e a Ervilha.
Era madrugada quando Nini saiu da rave, rave privada cujo destino era tão mas tão secreto que só se conhecia quando lá se chegava, seguindo indicações hieroglíficas de sms privadas. Uma vez mais, como perdera o iphone última geração, não sabia onde estava. Olhou os sapatos, tristes, mais um par roto. Suspirou, antecipando explicações sobre o telefone perdido e os sapatos feitos num trapo.
Foi atingida pela escuridão da noite e pela depressão Bárbara, cega por ambas. Caminhou ao acaso. Um jorro de água, nascido de fonte incógnita, vergou-a.
Acordou numa cama de dossel, fofa como chantilly ou claras em castelo ou não estivesse deitada em cima de inúmeros edredons e colchões. Pensou que morrera com entrada directa no paraíso até que entrou o homem velho, de coroa na cabeça, com uma taça fumegante e lhe disse: “Hoje temos favas com chouriço.” “Oh– exclamou ela - não pode ser antes ervilhas com bacon e ovos escalfados?!”.
Paula Carvalho
O segredo do cão
Trabalhara a vida toda, enriquecera, viajara pelo mundo, conhecera lugares onde ninguém jamais havia pisado, amara e fora amado. Entretanto, ao completar 60 anos, Pedro não se considerava um homem feliz. Faltava-lhe algo. Procurou todo tipo de terapia para descobrir que mal secreto enchia seu coração de melancolia. Tudo em vão.
Começava a conformar-se com a ideia de ser para sempre um homem infeliz quando, um dia, ao caminhar por um parque, viu um velho com um cão. O velho tinha o semblante mais sereno que Pedro havia visto em sua vida. Aproximou-se e perguntou:
- Velho, pareces tão feliz. Como conseguiste atingir felicidade tão plena?
- Vês o meu cão? Observa como ele corre e se diverte. Ele não pensa no que lhe falta. Apenas celebra o que tem. Aprendi com ele o segredo da felicidade.
Paulo Lima
As ervilhas mágicas
Era uma vez uma rapariga pobre que vivia no campo junto à sua mãe. Não tinham nada, apenas conseguiam comer graças à uma planta de ervilhas. A rapariga era muito bonita. Um dia passou por ali, perto da sua casa, um príncipe que se apaixonou por ela. Queria casar com ela, mas o rei e a rainha opunham -se à essa ligação por causa da pobreza da rapariga.
A pobrezinha ficou muito triste e chorou muitas lágrimas que caíram ao pé da planta de ervilhas. Essas tornaram-se numa chuva de ouro, pelo que a rapariga ficou muito rica e pôde casar com o príncipe.
Giuseppa Giangrande
O Exame
O João estava cansado de procurar a mulher com quem queria partilhar a sua vida. Bonitas, feias, ricas, pobres, cultas, alegremente ignorantes, percorrera já uma gama imensa de candidatas a futuras esposas.
O seu desejo era que a figura idealizada fosse culta, bem-educada e, acima de tudo, com impecáveis maneiras. Lembrava, agoniado, a última candidata que quase o matara de vergonha, no São Carlos, ao bater palmas nas pausas da orquestra.
Até que conheceu a Teresa.
Ela apareceu à hora certa, no local combinado. Iam jantar a um restaurante chique, muito chique, e o teste à mesa seria implacável: um exército de talheres, uma congregação de copos, um aglomerado de acepipes.
Imperturbável, ela sugeriu a ementa com a finura de uma gourmet, aprovou os vinhos como verdadeira connoisseur e dispensou o aperitivo.
A refeição decorreu suave como uma sinfonia. O garfo certo, o copo adequado, leves toques nos lábios com o guardanapo, sem esfregar.
Voz suave, conversa inteligente, sentido de humor.
Que maravilha, pensou. É esta!
- O que quer para terminar? perguntou ele.
- Apenas um palito para tirar este pedaço de carne que ficou preso nos dentes – respondeu ela, enquanto adiantava o serviço usando, delicadamente, a unha do dedo mindinho.
Conceição Brito
2.º Um conto de 100 palavras com o início, «Chegara a hora».
Pontualmente
Chegar à hora foi disciplina auto-imposta na sua longa vida de adulta, um misto de carta de alforria e de foral dos atrasos traumáticos duma educação ao Deus-dará. Da libertação nasceu a nova escravidão, a pontualidade de chegar antes da hora, e, depois, muito antes da hora. Em dias de compromisso matutino, agendava três despertares, dois em despertadores de corda e um do serviço homónimo dos telefones-de-lisboa-e-porto, de que nunca precisava pois despertava de hora a hora, sempre antes da hora.
Partiu um dia de madrugada, sem hora marcada, ainda assim na sua hora.
Paula Carvalho
Despedida
Chegara a hora. Jorge pegou a mala, apagou as luzes e saiu.
O carro já o esperava na frente do prédio. O motorista cumprimentou-o com um aceno de cabeça, guardou sua mala no banco da frente, assumiu seu lugar e deu a partida.
Jorge pediu-lhe que desligasse o rádio. Pela janela, via desfilar pela última vez as paisagens tão familiares.
Lúcia o esperava no porto. Abraçaram-se longamente e ele embarcou sem olhar para trás.
Permaneceu no convés até que o navio tivesse deixado o continente para trás. Abriu a urna e jogou as cinzas do seu passado no mar.
Paulo Lima
Inspiração em Oscar Wilde
O comboio partiu com a minha vida dentro. Fiquei no cais à espera que a minha vida regressasse e nunca mais regressou. Comecei a percorrer a linha férrea no seu encalço, na peugada do meu outro eu, o caminho alternativo que eu deveria ter percorrido. Era tempo de juntar-me ao que eu poderia ter sido. Chegara a hora.
Helena Campos
Disse-me o Poeta, «Antes o atrito que o contrato»
Chegara a hora, tardara, mas finalmente nos encontrou.
Por debaixo de tantos cubos de gelo submersos em solidão, ele contemplava as bolinhas de sabão de arco íris trajadas sopradas divertidas imparáveis brincalhonas...
O milagre.
Éramos tão sós e na solitude chegara a hora.
L@dyBirdBeL
(fotos: pegandawlbuilt.com)
Michelangelo, Escravos
Tema: Era uma v... | Textos inacabados
1 - O poema fragmentado
A partir de uma versão parcial, e sem conhecerem o original, os participantes completaram as frases de um poema, fazendo-o seu.
O meu poema teve um sonho:
Diz às palavras vivam
E ide procurar conhecimento;
O meu poema tem o brilho do saber.
Posso vê-lo cintilando
Em cornucópias de prata
Sem pressa
Ou receio.
Pergunto-lhe: com que sonhaste?
Mas apenas me envolve
E fica ali a pulsar na dádiva da plenitude.
Conceição Brito Lopes
O meu poema teve um furo
Diz às palavras: não sei se tenho salvação
e ide procurar ajuda.
O meu poema tem remendo
posso vê-lo a insuflar esperança.
Em fé
sem medo de morrer de velhice
ou de doença.
Pergunto-lhe: mas vais ficar bem?
mas apenas me devolve um suspiro
e fica ali apenas a existir.
Tânia Teixeira
O meu poema teve um problema
Diz às palavras: Voem no céu
E ide procurar versos.
O meu poema tem agora versos
Posso vê-lo feliz
em companhia dos seus versos
sem preocupações
ou tristeza.
Pergunto-lhe: O que é que te deixa ficar tão feliz?
Mas apenas ouve a voz dos seus versos
E fica ali a regalá-los.
Giuseppa Giangrande
O meu poema teve um bloqueio
Diz às palavras: regressem
E ide procurar as fontes
O meu poema tem angústias de alma, febres de perfeição
Posso vê-lo a tremer, a hesitar
Em tardes outonais de fim de linha
Sem rumo
Ou ponto de mira
Pergunto-lhe onde está
Mas apenas murmura em surdina algo desconexo
E fica ali a olhar o vazio
Helena Campos
O meu poema teve um sonho do qual acorda pensativo
Diz às palavras: deixem-me só
e ide procurar outras palavras que as substituam e sejam mais verdadeiras.
O meu poema tem esperança
Posso vê-lo desnudo
em busca da raiz da emoção
sem vocabulário
ou gramática
Pergunto-lhe: o que queres dizer afinal?
mas apenas se cala
e fica ali a página em branco
Paulo de Lima
Poema original que inspirou o exercício:
O meu poema teve um esgotamento nervoso.
Já não suporta mais as palavras.
Diz às palavras: palavras
ide embora,
ide procurar outro poema
onde habitar.
O meu poema tem destas coisas
de vez em quando.
Posso vê-lo: ali distendido
em cama de linho muito branco
sem perspectivas ou desejo
quedando-se num silêncio
pálido
como um poema clorótico.
Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti?
mas apenas me fixa o olhar;
fica ali a fitar-me de olhos vazios
e boca seca.
Daniel Jonas, in Os Fantasmas Inquilinos
2 - Fragmentos que contam histórias.
É possível contar uma história apenas com frases inacabadas? Ao fazer o exercício, percebemos que deixar por dizer dá outra expressividade ao texto.
Sonhava acordada com...
Ela pediu-lhe que...
Assustei-me e...
E não foram felizes para sempre porque...
Sem saber como..
A luz apagou-se...
Lembrou-se...
Naquela madrugada...
Ainda o sol não tinha raiado...
Sonhava acordada com...
O passado...
Ainda mal acabara...
Quando o carro...
Assustou-se...
Ele nunca mais lhe respondeu e...
Se não chover...
Quando chegaram ao funeral...
Ela pediu-lhe que...
Era uma vez.
Tânia Teixeira
Já não sou
Odeio quando
Ouvi algo de
Não tive como
Enganei-me
Não soube escolher
O tempo
Não fui a
Não disse que
Hoje não há
Dizes para
Insistes em
Não há
Já não há
O tempo
Nunca será
Helena Campos
Era uma vez
A madastra fazia anos que
O príncipe sempre com medo de
Até o dia que
A bebida no copo estava
Um gole e o príncipe
No meio da noite chega o
Beija o príncipe e ele
Fogem os dois de mãos
A madastra tenta
Mas volta com as mãos
A princesa decide que
E a madastra perde sua
Paulo de Lima
3 - Non finito em texto
Este exercício foi uma tentativa de exploração do non finito em texto.
O non finito nas artes plásticas (exemplo da reprodução de Michaelangelo acima) é uma obra inacabada que permite espreitar para as marcas do criador, para o processo criativo. Será possível fazer o mesmo em texto? Experimentámos.
...
Às 12 badaladas Branca pica-se no fuso do tear e desmaia. Nesse mesmo momento, a sua preciosa carruagem transforma-se numa abóbora e os sete anões acorrem a salvá-la.
(Estou tramada! Espelho meu, espelho meu, haverá alguém que confunda mais as histórias de princesas do que eu? Nunca sei quem é maltratada pela madrasta - serão todas? - ou pica o dedo, ou come a maçã, ou tem um príncipe - ah! isso sei, são todas!)
...
A luz da manhã rompe-lhe o sono e a ladeá-la está um monstro que a assusta.
- Calma Bela! - responde-lhe ele.
- O que é que aconteceu?
- Foste amaldiçoada pela rainha má, mas eu vou levar-te para longe e ficarás sã e salva.
- Como? - responde ela atordoada.
- Neste tapete mágico!
(Mentiria se dissesse como me desenvencilhar deste problema. Ah! Com um clichê!)
...
Num castelo num alto de um monte verdejante, a princesa e o seu amado viveram felizes para sempre.
Tânia Teixeira
…….de Neve e……
……….e, finalmente! alisou a última das sete caminhas. Olhou em redor, com cuidado, para não bater com a cabeça no tecto baixo [adjectivo redundante?]. O espelho do quarto continuava totalmente tapado (tantas recordações más) [mas ainda não quero falar disso ]
e os seus amiguinhos em breve chegariam para almoçar. Que vida horrível, sempre na cozinha!!
Só de pensar em comida, ficou com fome (no palácio comia-se tão bem! e tinha aios para servir, não tinha que cozinhar)
(…..) lá estava a maçã a olhar para ela, a chamar por ela. Afinal não a ia repartir com os sete anões, ia comê-la já, como a velha recomendara.
……ainda teve tempo para perceber que o egoísmo pode ser perigoso.
Conceição Brito Lopes
Branca de Neve estava a preparar o lanche dos anos, que logo chegariam do trabalho, quando ouviu batidas na porta. Intrigada, foi abrir. Era uma velha/senhora (decidir qual palavra usar. Não quero que digam que discrimino os idosos etc. e tal)
(Talvez seja mais verossímil se ela olhasse antes quem está batendo. Mas pode quebrar o ritmo.)
Boa tarde, minha jovem.
Boa tarde, senhora. Em que posso ajudá-la?
(Ressaltar o caráter ingénuo da Branca de Neve.)
Tenho aqui umas maçãs que estou vendendo para comprar comida para meus netinhos. A senhora gostaria de comprar uma?
Claro, minha senhora. Espere aqui que vou pegar o dinheiro.
Ela foi até a cômoda, pegu umas moedas e voltou para a porta. Pagou a velha e pegou uma maçã. (Não, a velha tem de dar a maça envenenada para ela. Ou todas as maçãs do cesto estão envenenadas?)
Parece muito gostosa mesmo.
Dê uma mordida para ver como é suculenta.
(Fazer suspense com a mordida?)
Paulo de Lima
Tema: MANCHETE. Escrever a partir de notícias de jornal
Nesta sessão explorámos as ligações e possibilidades de cruzamento entre escrita literária e escrita jornalística.
Porque aparentemente a distância é ainda maior, tomámos como exemplo a poesia, inspirada ou que recorre a linguagem jornalística. O mote foi dado com poemas de Alexandre O'Neill, Carlos Queirós, Manuel Bandeira, Daniel Filipe.
1 - Da notícia ao texto literário.
Como transformar uma notícia num texto literário, poema ou texto fragmentado?
Que história, ainda que breve e depurada, podemos revelar? Como manter o equilíbrio?
Transformar em pequeno texto cada notícia, ou ambas.
As últimas chamadas
A 5 de novembro as últimas chamadas
Quem falou com ele?
Não há resposta à essa pergunta
Ainda estão as luzes apagadas
em redor da pessoa desparecida.
O presidente jardineiro
Na capital timorense
há um presidente jardineiro
Os jardins da cidade agora
têm alguém que cuida deles
e reflorescem esplendorosos.
Giuseppa Giangrande
I
Há seis meses
Ele falava ao telefone
Todos o viram
Enquanto falava, dobrou a esquina
E sumiu
Desapareceu
Evaporou
O telefone foi encontrado
O homem continua desaparecido.
II
Primeiro foram as armas.
Era preciso lutar.
Depois vieram as reuniões e as solenidades.
Era preciso governar.
Agora são os jardins.
Cultivar a beleza ainda é preciso.
Paulo de Lima
Valham- nos Anjos.
Sempre os anjos.
Omnipresentes e tão cientes.
Não lhes cabe registar.
Resta-lhes o sabê-lo.
Somente o sabem.
Falo-vos de atitudes elegantemente rapinadas ao civismo tido como marginal.
Surgem de noite. Não deixam rasto.
Ficam reluzindo no dia as sementes de lugares.
Lugares donde se arrancaram as ervas daninhas.
Sementes livres...
Sementes de ajardinados acarinhados.
Não há nomes por chamar.
As atitudes tomaram- lhes o lugar.
Chega sempre o Natal.
Quente e frio.
É verdade é facto.
L@dyBirdBeL
2 - Continuar a distopia
Depois de ouvirmos o trecho da Invenção do Amor de e por Daniel Filipe, continuar a história dos amantes, da cidade, da liberdade, da repressão.
A Invenção do Amor, Daniel Filipe
… Mas o homem e a mulher
já fugiram para os jardins escondidos
do amor e dos sonhos
e de ali deixam chegar às pessoas
uma mensagem de amor.
Já que os sonhos e o amor
são revolucionários,
nos corações das pessoas
floresce finalmente a flor vermelha
da tolerância e da liberdade
Ninguém pode reprimir o
avanço do amor.
Giuseppa Giangrande
Para quem vive e o não sabe...
Para quem nos morre num porquê..
Das guerras que nos são impostas eis- nos mais um porquê.
Porquê tanta garantia que a espingarda é de exibir e o amor de proibir?
Porque estão as crianças a brincar acompanhadas de sorrisos sonantes sinceros invisíveis escondidos e mascarados?
Desmascarando as gargalhadas e descobri- las de boa fé.
Senti- las acutilantes e distraídas honestas e sabê- las tão sentidas.
Para quem vive sem nunca te ver.
Para quê morrer se nunca te crer foi para valer.
Tudo isto não faz sentido.
Tudo isto me baralha, tudo isto se instala.
Tudo isto me faz morrer.
L@dyBirdBeL
E mais homens e mulheres se encontrem
Contra a lei, contra a ordem
E a repressão baixe os braços, cansada e finalmente vencida
Porque um dia a repressão há-de morrer
E há-de nascer um pássaro com asas de neve, numa aurora tão longamente ansiada
Decrete-se uma lei onde se assassinem todos os amantes
Construam-se prisões de alta segurança
Coloquem-se cadeiras eléctricas para os detractores, achincalhadores da ordem
Antes que um dia um cravo espetado numa arma anuncie a aurora da liberdade sem regresso
E depois do adeus, passarão aves
Quebrar-se-ão grilhetas,
e não sobrará ninguém para contar a história daquele cartaz
Helena Campos
Em julho e setembro organizámos uma atividade de passeio e escrita sobre Lisboa. A partir de um roteiro preparado previamente pelos os becos e calçadas à volta da Sé, Castelo e Rossio, os participantes escreveram e fotografaram. Voltaremos a estes passeios mais vezes.
Rossio
Os meus passeios levam-me à praça do Rossio, sobretudo à noite. A luz do dia que me acompanhou nos meus caminhos de manhã aqui é substituída pela luz da lua, romântica e porta-voz dos sonhos. Ela, o azul obscuro do céu noturno e as luzes dos faróis refletem-se na calçada do chão que parece tomar vida e se transforma em ondas, como as dos mares que em tempos longínquos navegaram as caravelas portuguesas. As estátuas que adornam as fontes da praça projetam sombras. De longe, chega uma voz da Mouraria, que entoa um fado.
Giuseppa Giangrande
Rua da Saudade
Nasci e vivi na Rua da Saudade, num quarto andar do número 23, com vista para o Tejo, prédio famoso porque nele viveram o Ary das canções do festival e o O’Neill, aquele da coisa em forma de assim. O andar era o último, gelado no inverno, tórrido no verão. Vivíamos lá três gerações – avós paternos, pais, dois irmãos rapazes, um mais velho dez anos e o outro seis, que cedo fizeram pela vida, tornaram-se um, canalizador, o outro electricista, e cedo casaram, com moças do Bairro – ambas da Rua das Merceeiras -, e mudaram-se para Santo António dos Cavaleiros. Ao Domingo vinham almoçar connosco.
No Santo António de 1980, tinha eu 16 anos e acabado o décimo primeiro ano. A Directora de Turma chamara os meus pais para lhes dizer que eu era inteligente e devia continuar os estudos mas a conversa nem começou porque o velho disse que não ia, não queria doutores na família e doutoras ainda menos - e a minha mãe não se atrevia a contradizê-lo. A minha vida era calcorrear as vielas da Sé, descer do Limoeiro à Baixa, e fazer os recados da avó nas retrosarias da Rua da Conceição, ou subir aos Lóios, descer as Escadas de S. Crispim, apanhar S. Mamede e daí a Rua da Madalena, e na Praça da Figueira fazer as compras para a despensa. Não desgostava daquela vida preguiçosa mas sentia que tinha que haver mais – mulheres a cozer e a bordar o dia todo, as agulhas que se partiam, os dedos que se picavam, a vista que se finava aos poucos, o avô a tossir e a arrastar os chinelos, o velho a chegar ao fim do dia com cheiro a suor requentado, a entregar a marmita vazia e, ao fim do mês, o salário com que se pagava a renda, a água, a luz e o gás, porque a comida, essa, saía das rendas e dos bordados. Sem saber o que queria da vida sabia que aquilo não era vida para mim.
Nessa noite de Santo António fui com um grupo para o Largo da Sé para saltar a fogueira e comer umas sardinhas e um caldo verde. A avó tinha-me dado duas notas de cinquenta, daquelas com a Rainha Santa, e o meu pai uma das verdes, com a cara do Santo que dava nome à noite. Foi nessa noite e no Largo da Sé que conheci o João Carlos, mais velho que eu dez anos, um borracho, lindo de morrer, louro, branco e com olhos verdes de gato. Magro, muito magro, eu também o era, não tinha ainda formas de mulher, era lisa com uma tábua. De costas ou de frente parecíamos dois rapazinhos. O João Carlos não era do bairro, era fino e de boas famílias, morava num andar na Rodrigo da Fonseca, com elevador e aquecimento central. Sozinho, que os pais tinham ido para o Brasil em 74 e por cá o deixaram a estudar Direito e com mesada milionária – ou assim me contou a história. Mudei-me para a Rodrigo da Fonseca nessa noite, noite em que passei da infância ao inferno, sem parar no purgatório.
Hoje é noite de Santo António, tenho vinte anos e sei que estou a morrer. Tornei-me esquelética, quase transparente, os meus ossos furam a pele, que está coberta de manchas negras. Mal respiro, já tive várias pneumonias e ninguém me diz o que tenho. Ou podem ter dito e eu esqueci-me, como costuma acontecer. Só não me esqueço de duas coisas – da explosão que senti naquela madrugada de Santo António, quando o João Carlos pela primeira vez me injectou o cavalo e que a partir daí a minha vida foi a busca incessante de voltar a sentir a explosão.
Paula Tavares de Carvalho
tema: LITERATURA POTENCIAL. No aniversário da morte de Italo Calvino, escritas oulipianas
1 – Técnicas Oulipianas a partir de um texto baseado em escritos de Italo Calvino
Texto base:
Os clássicos são livros dos quais se costuma ouvir: «Estou a reler» e nunca «Estou a ler». No entanto, toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta, como a primeira. Aliás, toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. São livros que trazem consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). É clássico aquilo que tende a relegar a actualidades a ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse ruído de fundo.
Textos criados na sessão:
...Clássico, seja...
Os ouvintes, oram, operam, olvidam o outro, o outrem.
Ouvindo o ontem ondulando outra, outra ouvida, orando onde oiçam oficialmente.
Ontem ouviu- se oiro
Ontem ouviste oiro
Ontem ouvi onde ouvir
Ontem ouvi como ouvir
Ontem, outrora o ocaso, outro olhar. Onde? Ontem.
Amanhã aprofundarei
Enquanto houver manhãs
Igrejas abertas sem cruz, sino só
Ouvirei sempre como novidade
Uivarei a essa Lua Nova que badalará de noite aquando do meu mergulho...
...Oceano...
L@dyBirdBel
TÉCNICA: TAUTOGRAMA em «o» e ABECEDÁRIO com vogais.
Clássicos são os lobisomens dos quais se costuma ouvir: «Estou a remendar-te» e nunca «Estou a libertar-te».
No entanto, todo o remendado por um clássico faz uma libertação de descoberta, como a primeira.
Aliás, toda a primeira visão de um clássico é um rebanho de remendos.
Um clássico é um lobisomem que nunca terminou de dominar aquilo que tinha para dominar.
São lobisomens que tricotam a marca dos lençóis em que nos deitamos e, atrás de si, olvidam as tragédias que deixaram no cunhado ou nos cunhados que atropelaram (ou então, deixaram marca, tão simplesmente, no linho ou no cotão).
Pedro Caeiro
TÉCNICA: S+6 E V+6 - substituir cada substantivo e verbo de um texto pelo sexto que o sucede no dicionário.
Clássicos são livros dos quais se costuma ouvir “estou a reler”
Ler uma só vez não é suficiente
Aliás, a releitura de um clássico é uma descoberta
Sempre fica a sensação que foi uma primeira leitura
Sempre uma primeira leitura é de facto uma releitura
Ironicamente são livros que nunca mais acabam de dizer o que tem para dizer
Como se trouxessem consigo as marcas das leituras que precederam a nossa
Onde se vislumbram os traços que deixaram nas culturas que atravessaram
Sem prescindir da actualidade, relegam-na para ruído de fundo
Helena Campos
TÉCNICA: ACRÓSTICO com a palavra «Clássicos»
Deus livre a Literatura da exactidão
Para isso bastam as ciências exactas
Toda a arte é multiplicidade e leveza
Toda a arte torna presentes os invisíveis evidentes de que é feita a alma
Helena Campos
O livro tem de estar bem escrito, com muitas metáforas, tem de permitir visualizar o que se está a ler, tem de fazer sentir bem. E também um pouco de poesia, é libertador, não enfadonho. Também gosto da consistência, uma coerência no argumento, nas personagens, detalhes que não se perdem.
Leveza – fluidez, elegância narrativa, pormenores, picaresco, pictórico. As histórias-mosaico ou dimensionais com várias personagens a contar a mesma história na sua perspectiva (exemplos: Amor & Cia, Julian Barnes Quarteto de Alexandria, Lawrence Durrell).
Consistência – fio condutor excepção: o surrealismo
Paula Carvalho