LABORATÓRIO DE TEXTOS
Esta é uma fresta por onde se pode espreitar o nosso laboratório.
Gostamos de experimentar textos, inventar espaços e condições especiais e neles deixarmo-nos espantar pelo que acontece.
Aqui, recolhemos algumas das linhas que vão sendo criadas em diferentes oficinas. Algumas delas, dirigidas a antigos alunos, como a Naftalina, são iniciativas regulares; outras, abertas a quem por cá passa, são encontros e iniciativas extra-aulas. Placas de Petri.
Os textos, produzidos no tempo e condições das sessões, têm como único — e suficiente — critério de publicação a vontade do seu autor de vê-los aqui reproduzidos. Experimente ler, mas proteja-se: o prazer da experiência pode ser contagiante.
Os escritores e práticas da Oulipo são desde o início um dos temas preferidos da Naftalina. Estes «ratos de laboratório que constroem o seu próprio labirinto» mostram-nos como a escrita pode ser sempre reinventada. Enquanto leitores, os textos trazem-nos a alegria da decifração, enquanto escritores, o desafio de criar a cifra, de juntar forma e tema num novo texto.
FOLHETIM é um projecto de histórias a várias mãos vão sendo escritas ao longo das sessões. Cada história tem 5 episódios.
À ESPERA
à espera
sentada à espera da primavera
veio outra coisa
chegou a fome, chegou a guerra
melhores coisas aconteceram a uma quinta-feira
eu nasci a uma quinta-feira, não digo que fui incrível, mas nunca fui uma guerra.
nesta quinta-feira,
um espaço contestado entre este e oeste
ergueu-se à porta de casa, no jardim
um pedaço de terra que
ameaçava rasgar-se em dois
puxado por forças téctonicas
que seguiam caminhos separados
ao final de tantos anos juntas
dizem que este ano a colheita de trigo não será a mesma
os campos que sobreviverem até ao verão, não serão colhidos
os que morrerem, morrem queimados, tóxicos
a terra estéril, e o mundo com fome, com medo, com sede de vingança
quando não tivermos trigo para comer, alimentar-nos-emos de raiva.
mas a primavera ainda não chegou, e tudo ainda pode mudar.
é sentar e esperar.
SINAIS DE FUMO
O HOMEM QUER QUERIA ABRAÇAR O SOL
ESCOLHA
Não sabia o que fazer. Via-o no espelho ao acordar, nas poças da rua que percorria para o trabalho, até no vidro dos óculos quando os limpava. Sempre calado, a olhar para mim fixamente. Sentia-me cada vez mais fraco e notei ontem que o rosto parecia mais jovem no vidro da janela. Toquei na superfície refletiva e inexplicavelmente comecei a ficar melhor. Foi então que o ser falou. Manuel, está na hora de trocar. Oh não, fez-me algo. Se quiser viver, tenho de agora tomar o seu lugar no outro lado, mas valerá a pena? Afinal, vou ficar trancado, tendo apenas os meus próprios pensamentos como companhia.
E, para dizer a verdade, era boa a companhia dos meus pensamentos. E, ao final, percebi que aquele ser, que quase se tinha tornado uma perseguiçãoção, era eu mesmo.
O outro lado era o meu lado que tinha ficado escondido, incapaz de ler, até àquele momento, dentro de mim.
Tinha -me afastado de tudo o que era importante na minha vida, era um ser muito solitário.
Agora era a altura certa...se eu quiser viver, tinha que dar uma reviravolta à minha vida.
Começou a chover... aquela chuva que limpava os vidros da janela, limpava a minha existência. O ressoar de uma canção: “... E eis que ela bate no vidro,Trazendo a saudade...”
https://m.youtube.com/watch?v=tC88Oyz8Khs
Manuel começou a sentir os pés encharcados e isto fez com que voltasse a si.
Fechou a porta da varanda e entrou em casa. Olhou à sua volta, estava desarrumada, cheia de passado.
No cadeirão viu a sua figura, esperava-o. Era hora de fazer alguma coisa. Primeiro, decidiu chamar-lhe José.
Ele e José seriam uma equipa e juntos iriam dar a volta à vida de Manuel.
Com o sol já a espreitar lá fora, pegaram na mala amarela que estava a ganhar pó à porta de casa, desde aquele dia, e saíram os dois.
Já na rua, Manuel tropeçou numa montra e quando viu a manequim olhar-lhe de volta, José começou a chorar.
- Aquele tipo deve estar bêbado ou doente – comentou o funcionário da loja – a
tropeçar assim nas montras! Ó amigo, quer ajuda?
- Não, não obrigado – respondeu Manuel, enquanto a manequim lhe fazia caretas
diabólicas e José gesticulava para ele se ir embora.
Manuel regressou a casa e pegou no frasco dos comprimidos. Tinha de tomar um para
parar com aquelas alucinações. Lá estava José de novo sentado à sua frente. Manuel
não queria que na rua alguém percebesse que ele padecia daquela doença.
Mas antes disso, queria ter uma conversa final com aquele José, aquela versão mais
nova dele próprio, e orientá-lo para outra escolha num universo paralelo.
Quem sabe se a escolha tivesse sido diferente na sua juventude, ele não estivesse ali,
na meia-idade, fracassado, alucinado e encharcado em comprimidos.
No caminho, Manel desconhece as ruas. Segue, a passo cada vez mais apressado como se estivesse a ser perseguido, mas continua perdido.
O coração parecia querer sair pela boca e fazer-se ouvir, tal era o eco que sentia no peito. Parou, respirou fundo, olhou em redor e avistou uma cabine, daquelas dos anos 90, aberta, sem caixa. Desencantou umas moedas do bolso das calças, colocou na ranhura do telefone e ligou para sua casa.
- Estou? Clarisse? Clarisse, que bom ouvir-te, chegaste bem de Coimbra? Olha, estou perdido. Não sei onde estou, mas sei que não quero voltar para trás.
- Que dizes? Onde estás? Estás estranho. Vou-te buscar, mas tens de me dar referências.
- Estou frente a um prédio amarelo que tem em baixo um café chamado “Volto já”. Está fechadérrimo, isso sim.
- Acho que já sei onde é. Fica aí, abriga-te e espera.
Poucos minutos se passaram até que a irmã chegasse e o levasse para casa. De toalha nos ombros, já com os cabelos enxugados e roupa seca, dirige-se para a sala e vê José sentado. Pára, dá um gemido contido e Clarisse, percebendo a estranheza, exclama:
- Manel, apresento-te o Zé, nosso irmão. Tens um irmão gémeo. Foi criado com uma outra família por um erro no hospital. Contactou-me há um par de meses e disse-lhe que nos devia vir conhecer. Chegou antes de mim e não tive oportunidade de te comentar porque queria também que fosse uma surpresa para o teu, vosso, dia de anos. Parabéns aos dois! Brindemos e sentemo-nos a celebrar os caminhos cruzados.
José Maria Covas
Giuseppa Giangrande
Rita Gomes
Helena Campos
Catarina Ariztía
Acordei como sempre às seis da manhã, em ponto, ao som da música acolhedora do Ed Sheeran.
Quando me viro e olho para ele, ele já está sempre acordado com um sorriso largo no rosto e beija-me com um hálito a menta fresca, que me acorda definitivamente.
Ele levanta-se de imediato para preparar o pequeno almoço, eu fico mais algum tempo a sentir o quente da cama que me aconchega e em faz sentir segura, aos poucos começo a sentir o aroma a café e do pão quente vindo da cozinha e que por breves instantes me faz viajar até a casa da minha avó nas férias do Natal.
Levanto-me, tomo um duche rápido a água fresca a escorrer sobre a minha pele enche-me de energia e afasta a letargia de há pouco.
Visto-me e desço as escada, ele já tem a mesa de pequeno almoço pronta na varanda que está virada para o jardim, o chilrear dos pássaros produz uma melodia deliciosa que adoça o meu iogurte light de morango, sinto-me no paraíso.
- Está na hora! - Diz ele
Abraçamo-nos e despedimo-nos com um beijo apaixonado, húmido que me reconforta e aquece para todo o dia.
É sempre assim todas as manhãs, uma vez por mês desde á 5 anos, quando tenho de uma reuniões com o Conselho de Administração
Não sei como seria sem ele!
Sandra Martins
Vida?
Regresso à praia da minha infância. Mudou tanto. As casas piscatórias a poucos metros de distância eram agora mansões góticas, tendo o verde do chão sido aprisionado por baixo do betão. O cheiro salgado, gerado pelo batimento das ondas no cais, havia sido substituído pelo cheiro a queimado, que voava das fábricas distantes. Até o mar, anteriormente convidativo, parecia mais agreste. A água parecia quase congelar os incautos e a areia, projetada para cima dos fugitivos pelas rajadas do vento, tornara-se áspera.
Aquela memória do que fora outrora permanecia comigo. Impulsionara as minhas viagens em navios de carga para o Novo Mundo quando a vila fora anexada à cidade. Família e amigos fora separada pelas correntes da vida laboral, tendo já alguns partido para lá do horizonte, mas mesmo assim procurava o local onde poderia voltar a reencontrar essas sensações, essa conexão com o berço da vida.
Não fui bem-sucedido. África, Ásia, Américas e Europa não conseguiram recriar os momentos passageiros da minha antiga vida. Outrora poderiam, mas agora também estavam num processo de decomposição. Ah, a Humanidade, tão feia que é ao disfarçar as suas tendências parasíticas com palavras belas. Progresso…mais aparenta ser um Retrocesso ponderado e virulento a caminho da extinção.
Já não estarei cá para o ver. Sento-me, inspiro fundo, e depois levanto-me. Ao usar o instrumento da minha libertação, nem noto a transição. Deixo a minha carcaça imperfeita, saio disparado, atravesso as nuvens tóxicas deste mundo abandonado e vou em direção ao solarengo portão no alto, de volta a casa.
José Maria Covas
Os sentidos em alerta
Tinha o telemóvel na mão quando subi as escadas. Até o corrimão era áspero. No último andar um círculo de portas negras numeradas e o murmúrio de vozes de um homem e de uma mulher.
Sentei-me à espera enquanto mastigava um naco de pão com um travo de bolor. Algo ali cheirava a morte.
Da porta 4 saiu um vulto feminino que se escapuliu pela escadaria abaixo. A porta fechou-se e voltou a abrir-se pouco depois.
Era um sujeito entroncado, de farto cabelo negro e todo vestido de escuro que vinha receber-me. Uma figura sinistra.
Tinha o telemóvel na mão e pensei em dizer-lhe que tinha de me ir embora imediatamente porque surgira uma emergência. Mais valia tê-lo feito.
Antes ainda de ouvir-lhe a voz metálica, vi-lhe a expressão do olhar. Já vira aquele olhar há 30 anos, no tipo que me destruíra a vida, a cintilação da malvadez, uma luz satânica quente como o fogo, ávida de destruir vidas, como um lobo que espera pacientemente a sua presa e se delicia com a sua súbita aparição.
- Você tem uma intuição poderosa, use-a! – dissera-me alguém há muitos anos.
Os sinais de alerta vermelho dispararam todos no meu cérebro – É igual ao outro de há 30 anos, vais-te queimar!
Tinha o telemóvel na mão. Podia ter dito que havia uma emergência e fugir…
Helena Campos
Giuseppa Giangrande
- Os meu Parabéns Catarina! A apresentação foi brilhante! Muito melhor que a minha.
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- Trabalhei tanto, esforcei-me tanto, fiz uma apresentação brilhante e rejeitaram-na.
Sandra Martins |
- Este papel é seu. Esqueceu-se dele no pára-brisas do meu carro! Grita |
- Este papel é seu. Não gosto que me deixe recados e me diga o que devo ou não fazer com o meu carro, ou seja com o que for.
- Não deixei recado nenhum, mas acho pouco civilizado bloquear outros carros sem avisar sequer.
- Lá porque eu não tenho uma casa com garagem e jardim, não lhe permito que me diga o que fazer, já me chega lá no trabalho ou a minha mãe.
- As invejas não se resolvem com violência. - Pode ter mais dinheiro, mais tempo, mais liberdade de escolha e pode até ter mais espaço e um carro melhor, mas isso de me dar ordens que me façam sentir inferior e estar a ser mandado não lhe aceito. A inveja incentiva-o a atirar o papel à cara do vizinho e a força das frustrações fecha firmemente a porta. Catarina Ariztía
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O dia passava lentamente, a Catarina, muito cansada, quase arrastava os pés. |
Quando desligou, o marido da Catarina começou a pensar que - ele era um cínico - ter casado com a Catarina tinha sido um grande erro. Era a mesma coisa que pensava a Catarina, apesar de ser uma pessoa de poucas palavras.
A Catarina lembrou-se de ocasiões perdidas e não passava um dia sem que se arrependesse da sua decisão. O marido, entretanto, no carro já mudou de ideia e depois de ter ligado para a Catarina, para avisar que tinha tido um imprevisto e que não ia almoçar, dirigiu-se ao clube de regatas. Ainda bem, pensou a Catarina aliviada, e abriu a janela para respirar fundo.
Giuseppa Giangrande |
- Posso ir lá, ou não? (Tchau, até ao meu regresso.)
- Tu é que sabes, mas eu tenho que comer. (Atreve-te a sair, meu camafeu!)
- Ok, mas eu posso deixar o prato arranjado e é só aqueceres. (Filho, orienta-te...)
- Vai lá. (Se saíres, escusas de voltar.)
- Tens a certeza que não te importas. (Mesmo que te importes, adeus.)
- O que é que disseste? (Mas tens coragem?)
Tiago Pina
Maria Luísa continuou a dobrar a roupa. O marido continuava a falar. Não o ouvia. Sabia que devia prestar-lhe atenção, que havia pormenores e detalhes e informações e coisas que lhe convinha saber. O marido, não, nada de marido! Era melhor mudar-lhe o título já: o futuro ex-marido seguia com a diarreia verbal. |
Maria Luísa continuou a dobrar a roupa. O marido continuava a falar. Não o ouvia. Sabia que devia prestar-lhe atenção, que havia pormenores e detalhes e informações e coisas que lhe convinha saber. O marido, não, nada de marido! Era melhor mudar-lhe o título já: o futuro ex-marido seguia com a diarreia verbal.
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«Um escritor deve acreditar que o que está a fazer é o mais importante do mundo.», John Steinbeck.
A frase de Steinbeck deu o mote: o que faz o escritor. Pode-se fazer o guia, a tábua de regras da escrita? Ou em cada texto, estão já as instruções?
Voltando ao real, os textos prescritivos são um excelente pretexto para escrever e, desde o início, tiveram lugar nas nossas oficinas. Nesta sessão voltámos aos textos de Cortázar e espreitámos poemas de João Luís Barreto Guimarães, Vicente Piqueras e Neil Gaiman.
Estes foram os textos que criámos.
Sentes-te sozinho?
Triste?
Deprimido?
tens saudades dos tempos da escola?
Precisas de te conectar mais com as pessoas
Precisas de amigos.
Primeiro passo para fazer uma amizade
Olha-te bem no espelho.
O que vês?
Não tenhas receio, medo
Abre bem os olhos
Não vejas só o reflexo
Procura mais fundo dentro de ti
Segundo passo
Olha à tua volta
Que pessoas vês?
Quem são?
São diferentes de ti?
São parecidas contigo?
De que gostam? De que não gostam?
Não fiques pela superficialidade
Não te deixes enganar pelo preconceito
Aproxima-te com um sorriso
Um sorriso poupa palavras
Quebra barreiras
Abre portas
Abre vidas noutras vidas
Sandra Martins
Instruções para lavar as mãos
Em Roma no ano 33, Pilatos pediu um púcaro de água que verteu sobre as mãos
cobardes que podiam ter salvo o sangue inocente de Cristo.
2000 anos depois, na Rússia, o presidente lava as mãos numa casa de banho
esplendorosa ante o sangue de ucranianos inocentes.
Derretem-se as calotes polares num oceano putrefacto, sobe a temperatura a 50ºC na
Índia e os magnatas lavam as mãos na sua toilette de ouro.
Espalha-se um vírus mortal de oriente a ocidente e os chineses lavam as mãos no
remanso do rio amarelo.
Instruções para lavar as mãos:
- Daltonismo para vermelho sangue
- Um pedregulho no lugar do coração – (esta já dissera D. Pedro I de Portugal dos
algozes de Dona Inês de Castro).
Helena Campos
Instruções para viajar no tempo
Pega num livro, em fotografias de um tempo longínquo e deixa-te levar pelas lembranças, verás que vais fazer uma viagem que te conduzirá pelo passado.
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Instruções para escrever imagens
Toma o azul do céu e do mar,
O verde de um prado,
O vermelho, o amarelo, o cor-de-rosa das flores...
Usa as palavras que saem do coração para as fixar no papel, assim vais escrever imagens
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Instruções para conseguir algo
Talvez seja preciso fazer apenas uma coisa: não deixes de sonhar...
**
Instruções para quando é preciso ficar em casa em um dia de festa ou de sol
Abre a janela, respira fundo o ar e deixa que o sol acaricie a tua cara...
Deixa-te levar pelo optimismo e tenta ver a vida com cor-de-rosa, apesar das dificuldades.
Giuseppa Giangrande
O filho do Diabo
O haiku é já um clássico da Naftalina - desde o início, ficámos fascinados por esta escrita tão breve, puramente sensorial. Um bom exercício de depuração e de descoberta do que é essencial.
Nesta sessão o tema foi a primavera.
Dançam as flores O sol beija As andorinhas voam e A chuva primaveril
Risadas voam, Crianças correm,
Costumam chegar
O gato à janela Narcisos frescos Irene Aragão |
Verdes trigais em flor Num mar de papoilas Despontam folhas no arvoredo Muda a hora, os dias alongam-se
a vida espreita os pássaros chilreiam
Voam andorinhas Roupa estendida Choram os olhos Chuva miúda |
O Espanador limpa o pó dos locais mais recônditos. Desta vez, foi até ao armário dos sapatos e das fez-se ao caminho dos textos com 3 desafios:
Uma história com sapatos
Este sapato tem a sua história
Uma história com a expressão «gastar a sola dos sapatos».
Eis alguns dos textos escritos na sessão.
Uma história cheia de sapatos
Ele vivera toda a vida com uma pedra no sapato – tinha a profissão errada – e volta e meia dava à sola dos maus empregos que ia arranjando. O irmão dizia-lhe que havia sempre um sapato velho para um pé cansado e que haveria de encontrar um emprego à medida. Ele contraponha que todos os patrões eram ingratos, faziam
dele gato e sapato e havia mais ingratos que sapatos. Uma vida a gastar sola de sapatos a procurar empregos que não serviam, pois, a vida era dura como a sola de um sapato. Os outros, a quem Deus dava botas apesar de já terem sapatos, não conseguiam porem-se nos sapatos dele. Arranjar um emprego estável era uma bota que ele não conseguia descalçar. Andava de sapato raso sem cunha e quando finalmente alguém por caridade lhe meteu uma cunha bateu as botas.
Helena Campos
Uma história sobre sapatos
A Ana adorava sapatos desde criança. Sapatos, sapatilhas - ou ténis como muito mais tarde aprendeu - botas, sandálias, chinelos. O que servisse no pé e no seu gosto, nem sempre muito requintado, a Ana calçava. Vibrava com o cheirinho a sapatos novos nas duas sapatarias onde ia com a mãe e a avó nos anos 90, antes de os centros comerciais acabarem com a magia de entrar numa loja quentinha e luminosa, num final de tarde escuro e chuvoso de Inverno. Normalmente um fim de Sábado, depois da missa. Era a melhor hora para comprar sapatos, segundo os antigos.
De mão dada com a mãe e a avó, a pequena Ana fervilhava de entusiasmo quando experimentava calçado nunca antes usado por ninguém. Não tinha riscos, nem vincos nem a sola suja nem formato de pé. Um sapato novo era como um caderno em branco onde muitas histórias podiam ser escritas.
Escolhidos os sapatos e paga a fatura que a pequena Ana não entendia, era chegada a hora de imediatamente os calçar. Viver em sapatos novos era viver mais alegre, era um mundo de experiências e histórias novas. Os sapatos velhos eram remetidos à sua nova caixa e, com muito gosto, encerrados os seus tempos áureos.
O problema da pequena Ana vinha depois: colocar os sapatos no chão e, efetivamente, andar neles. A sujidade das ruas, os vincos ao dobrar o pé e, pior que tudo, a possibilidade de alguém distraído e desastrado pisar o sapato novo!
A experiência de comprar sapatos novos terminava invariavelmente em lágrimas, nesta dicotomia que a vida também é, entre as aventuras que ansiamos e os arranhões que tememos.
Este sapato tem a sua história
A minha avó mostrou-o numa das mãos:
Este sapato, tal como o vês, tem a sua história.
E contou-me que aquele sapato pertencera a António, que não conseguia esquecer.
Por vezes, disse-me, deitava-se na cama com o sapatinho pequeno entre as duas almofadas: a dela e a do meu avô, que mantinha o seu lugar na cama intacto, mesmo já lá não dormindo há tantos anos. E assim adormecia, com o marido e o filho juntinho de si, imaginando-os felizes ao rirem-se dela e da sua falta de oportunismo para finalmente ocupar a cama inteira.
Uma noite, no silêncio do pequeno apartamento onde agora vivia sozinha, jura tê-los ouvido a rir. “Eram eles”, disse-me. “O teu avô e o teu tio que eu bem os ouvi”.
Quando acordou, o sapatinho continuava no mesmo lugar, entre as duas almofadas. Inexplicavelmente, dentro de um deles, repousava uma pétala de rosa amarela. “Eram as flores que o teu avô me dava sempre”, explicou-me em lágrimas. “Nos dias em que as saudades do meu António apertavam, eram rosas amarelas que me aqueciam o coração”.
Gastar a sola dos sapatos
Ana Rocha
Problema
A situação de Ernesto era preocupante. De facto, os sapatos eram perfeitos. Protegiam os seus pés de todas as intempéries, permitiam-lhes percorrer o país de uma ponta a outra num só dia sem nunca ficarem cansados. Contudo, os sapatos eram tão bons que não os conseguia tirar. O interior tinha se tornado numa câmara selada e os seus pobres pés, encurralados, serviam de alimento aos residentes fúngicos e bacterianos das profundezas. Pouco faltava para um dia a carne, junto com as suas enervações, desaparecer. Esse seria o dia em que os ossos deixariam de ser guiados pela sua vontade e finalmente descansariam no chão. Se ao menos tivesse dado mais atenção à etiqueta dos sapatos quando os comprou: Muito obrigado, ao comprar estes sapatos orgânicos está a prestar uma grande ajuda ao meio ambiente.
Desafio
Desejo
Finalmente. Porque é que não tinha pensado fazer isto há mais tempo, pensava Augusto enquanto cavava. Era ainda criança quando Dom Afonso lhe tinha tido: Se trabalhares bem serás recompensado. Não precisava de dinheiro porque a mansão providenciava-o com comida e alojamento, mas sempre quis ter algo que o destacasse dos demais. As botas do seu mestre eram a moda da altura e, portanto, cobiçadas. O problema era que Dom Afonso lhas deixara no seu testamento. Portanto, em vez de esperar mais pela vida decorrer de forma natural, Augusto decidiu apressá-la. Nesse momento sentiu a tampa do caixão a bater na pá, abriu-o e agradeceu ao seu mestre as botas bem merecidas.
José Maria Covas